Palavra da Cá

Este Blog quer partilhar textos literários e nem tanto com vocês.
Vamos trocar poesias, fragmentos e idéias.
Afinal, as palavras nos justificam, não é?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Faz de conta que é Hai-Kai

Num delicioso curso que fiz há mil anos com a Alice Ruiz sobre Hai-Kai, aprendi que esta forma de poema oriental, derivada da contemplação e meditação budistas , tem, entre outras regras, um número certo de sílabas em cada um de suas três linhas. É claro que eu raramente consigo limitar-me ao número correto, mas não faz mal. Às vezes, contemplando a natureza em minhas andanças no parque, vem um "quase hai-kai":

No espelho do lago
dois peixes vermelhos,
namorados.

Beijos

A dor de ser humano

Então, falávamos de cinema e é preciso um espaço especialíssimo para o último trabalho do Sam Mendes e da incrível Kate Winslet, "Foi apenas um sonho" . A começar pelo título em inglês, (Revolutionary Road), de uma ironia fina, própria do diretor. De revolucionária aquela vida não tem nada - assim como não tem a maioria de nossas medíocres e ilusórias existências. E é disso que o filme fala- com o brilho que o diretor já mostrara em Beleza Americana. Trata-se de uma
implacável reflexão sobre o vazio que nos acompanha do nascimento à morte e que tentamos desesperadamente preencher consumindo sonhos materiais, afetivos, sociais, profissionais, religiosos ou seja lá qual for. A casa de subúrbio (ou de condomínio, no Brasil), os filhinhos lindos, a carreira bem sucedida, a esperança da viagem fantástica e, o pior: a certeza de que somos brilhantes, diferentes, especiais- mas que nem mesmo assim conseguimos nos livrar do "vazio sem esperança" que nos acompanha, como define o perosnagem mais lúcido da história ( o "louco", como não poderia deixar de ser).
Acho que muita gente vai torcer o bico para o filme. Afinal, não é todo mundo que encara o monstro de frente e aprende (pelo menos um pouquinho) a lidar com a impotência de saber-se humano apenas - com todas as impossibilidades que isso acarreta. Para esta turma- que continua a acreditar que o carro do ano, ou a tese de doutorado, ou o salário de executivo ou o "grande amor da minha vida" são receitas de felicidade- o filme pode parecer "chato" ou "pesado". Na minha modesta opinião, o Sam Mendes é gênio. E sabe como poucos falar com sutileza e elegância dessa dor que nos pertence inevitavelmente.
Beijos

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Um Carnaval cinematográfico

Terça-feira gordíssima, sem grandes possibilidades, a não ser as que nos justificam sempre: cinema, leitura da boa e gente de qualidade.
Pois bem, confirmei nos últimos dias que ainda se faz excelente cinema nos EUA. O Curioso Caso de Benjamim Buttom é cinema de primeira, com a qualidade adicional de escolher o caminho da delicadeza, dos encontros sutis, da economia elegante para reescrever essa história fascinante. Sem falar no Brad cavalgando naquela moto, que aí também já é covardia.
A Troca, outro exemplo de que a família Pitt/Jolie não está pra brincadeira, também emociona com uma história verídica daquelas improváveis de tão absurda e com a fantástica interpretação de Angelina Jolie,como sempre dando banho.
Slumdog Millionaire - delicioso, pungente, emocionante. Uma curiosa e bem sucedida mistura de Cidade de Deus com conto de fadas bollywoodiano. Adorei.
Operação Walquíria vale pela história, pela boa direção e excelente casting - apesar do esforçado Tom Cruise.
Exceção para Austrália (Argh!), uma sucessão de equívocos, da direção ao trabalho dos atores. Insosso, inodoro e incolor, apesar da estupenda paisagem, dos figurinos impecáveis da linda Nicole Kidman ( que não faz juz ao seu talento) e daquele monumento do Hugh Jackman que, por sinal, deu um show à parte na apresentação do Oscar. Mostrou que não é só bonito - canta muitíssimo bem e dança como gente grande. Bem, já é mais que a maioria.

Quanto às leitura, tenho descoberto (meio tarde, eu sei) o português Lobo Antunes. Vale abrir suas páginas. Assim como há alguns anos abri as do moçambicano Mia Couto e nunca mais fechei. Agora falta chegar no angolano Agualuza - ou seja, nosso idiomazinho complicado tem bastado para encher os olhos e o coração de alegria.

Como se vê, Carnaval também é bom para os não-foliões de carteirinha.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Ritmo da Máquina de Costura

Um dos objetos mágicos para me transportar de volta à infância é uma velha máquina de costura "Elna", verde cor de abacate, que até hoje se abre reluzente e operosa sobre a mesa da cozinha da casa da minha tia.
Contando, seguramente, mais de quarenta anos, ela é de uma eficiência e praticidade que faria inveja a muito "design" moderninho. Além de poder ser carregada para todo lado dentro de uma espécie de maleta que, aberta, se encaixa ao corpo da máquina em minutos, a portátil "Elna" transforma idéias e um pouco de dedicação em maravilhas.
De sua afiada agulha já brotaram gerações de vestidos, saias, calcinhas e calções, blusas, blasers e que tais. Conta minha tia — endossada por minha mãe e toda geração antiga da família — que na fidelíssima "Elna" foi costurado o enxoval de duas e de outra dezena de primas e amigas. Meu próprio enxoval de bebê foi cuidadosamente gerado naquele retângulo verde.
Tempo em que se esperava uma criança com a tranqüilidade de noites debruçadas sobre a máquina de costura, recortando linhos, organdís, piquês, babados, intricados pontos "paris" e toda a delicadeza do mundo. Tempo também em que as moças não se vestiam em butiques. Folheavam figurinos garimpando modelos bonitos para serem exibidos na quermesse da igreja ou no "footing" em frente à praça. Outra fonte de inspiração eram as fotos dos filmes em cartaz na cidade. O decote de Rita Hayworth, a saia farta de Doris Day, a cintura de vespa de Ava Gardner. Sonhos transportados diariamente de Hollywood para o interior do Brasil através de uma máquina de costura e, claro, de uma boa dose de talento para a adaptação. Em sua formatura, minha mãe fez questão de uma "Dama das Camélias".
Lá foram ela e minha tia para a porta do cinema estudar detalhadamente o decote da atriz, recortado de camélias brancas que, mais tarde, dariam um tom meio trágico e misterioso ao singelo baile da escola. Se as saias subiam, a "Elna" entrava em ação. Se a cintura descia, recorria-se outra vez à engenhoca. E todo mundo, mesmo com o dinheiro contado, era capaz de fazer bonito numa época em que as mulheres não dispensavam o salto alto, as meias de seda e um "glamour" cheio de drapeados, "tailleurs" e saias justas dos quais morro de inveja.
Fico pensando de onde surgiu esse nome, "Elna", tão misterioso para mim quanto a origem da máquina, que não sei bem se veio da Itália ou da Suiça. A verdade é que sua imagem grudou-se em minha retina e percorre minhas lembranças mais recônditas. Talvez porque, segundo contam, eu, pequenininha, costumava me empoleirar nos ombros dessa santa tia enquanto ela pacientemente costurava. E cantava. Sim, cantar ao fazer algum trabalho mecânico, como costurar, lavar ou passar a roupa é outra tradição da família. E, não me perguntem por que, a música eleita é a antiquíssima "Maringá". Aquela mesma: "Maringá, Maringá/ Desde quando tu partiste/ Tudo aqui ficou tão triste/ Que eu garrei a imaginá...".
Diz a minha tia que, cantando, o serviço fica mais leve e prazeroso. Já experimentei. Funciona. Pois era com sua voz aguda e afinada no coro das "Filhas de Maria" que titia cantava "Maringá", acompanhada pelo ritmo quase silencioso da velha "Elna". Tenho uma saudade quase dolorosa desse tempo. E de um outro tempo que não vivi — apenas sei de ouvir histórias e lamento não ter experimentado. Imagino-me, às vezes, apertada num vestido longo de tafetá, rodopiando ao som de Glenn Miller num daqueles bailes faiscantes de metais e flertes; ou tomando um bonde para a sessão da matinê de cinema; ou ainda sendo cortejada no portão dessas casas com janelas na rua, por um moço "educado e cheio de boas intenções".
Pra falar a verdade, sinto-me às vezes meio traída por não ter pertencido a essa geração pós-guerra, carregada de esperanças, sutilezas, cuidados, segredos bem guardados, casamentos duradouros, homens fortes e masculinos com suas ombreiras e chapéus, mulheres suaves e maternais. Que seja uma grande fantasia. Pouco importa. Olhando hoje para a pequenina "Elna" sobre a cozinha, ou cantando "Maringá" enquanto lavo a louça, penso se não perdemos alguma coisa preciosa no meio do caminho.
Andamos muito, parece, com a modernidade, a tecnologia, a liberação dos costumes, o trabalho feminino remunerado. Pode ser. Mas já não nos permitimos ser a "Dama das Camélias" por uma noite. Cortamos dos nossos filmes pessoais qualquer cena romântica; apressamos e expusemos nossos corpos, antes tão guardados; afiamos nossas "cabecinhas de vento" para enfrentar, competir, esgrimar discursos, antes, só masculinos; esterilizamos nossos úteros com medo de perder o trem da história, veloz, lá fora. Será que somos mais felizes agora?