Palavra da Cá

Este Blog quer partilhar textos literários e nem tanto com vocês.
Vamos trocar poesias, fragmentos e idéias.
Afinal, as palavras nos justificam, não é?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

PALHAÇADAS

Estive fim de semana em Sampa. Bão demais, como sempre. Tirando a neura do trânsito e da bagunça que estão cada vez pior, aquela cidade é o máximo. A melhor do Brasil, sem dúvida. Eu e a Nani fomos ver "Vestido de Noiva" do gênio Nelson Rodrigues, numa montagem belíssima do Gebriel Vilela, com aquele seu universo Barroco, que enche o palco de poesia e criatividade. A Leandra Lea, dando um show. Lindo
A feira do Bexiga é outra coisa gostosa de experimentar nos domingos de manhã. Não sei o que é mais interessante: as peças sendo vendidas nas barraquinha ou os vendedores que, estranhamente, se parecem cada vez mais com antiguidades excêntircas. Eles valem um ensaio fotográfico, uma matéria, sei lá. Ali perto, um grupo de teatro mambembe, na rua, delicioso. Na véspera, fomos ver Vik Muniz no Masp (fantástico) e na entrada, um grupo de palhaços "orintando" o trânsito e desorientando todos os nosso parâmetros caretas. Ser palhaço deve ser a coisa mais gostosa do mundo. Tiramos uma lasquinha deles pra não esquercer mais.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Delícias da Flip

Estivemos um grupo delicioso na Flip, em Paraty. Além das fantásticas figuras literárias que circulam por lá e da encantadora paisagem colonia, ficamos numa pousada, na praia da Almada que é simplesmente o máximo. Pousada Casa Milá. Olha ela aí.

domingo, 28 de junho de 2009

OBRA PRIMA

Gente, não percam de jeito nenhum o documentário 'SANTIAGO" do João Moreira Salles. Êta familinha genial. Trata-se na minha opinião de uma pequena obra prima. Santiago foi o mordomo na Casa da Gávea, dos Moreira Salles durante 20 anos> E em 92, João ainda bem jovem resolveu gravar com Santiago o que seria um documentário, já que o homem era um personagem e tanto. Só que não virou. O material ficou guardado até 2005, quando Santiago já havia morrido e João monta a história do mordomo com rara beleza e sensiblidade. Na verdade, trata-se de um resgate da própria vida do João e de seus irmãos, através das histórias deste personagem riquíssimo e excêntrico que é Sanbtiago. Um desses presentes da vida. Vejam e se deliciem.

terça-feira, 16 de junho de 2009

A casa do meu bisavô

Esta noite sonhei com a casa do meu bisavô.
Ela ainda está lá, na mesma esquina, hoje movimentada do centro da cidade, e foi transformada em sede de um jornal (nada é por acaso - afinal, dois dos meus primos, um escritor e outro jornalista, foram praticamente criados naquele quintal coberto de parreiras, o Rubens Luchetti e o Luciano Lepera)
Mas no meu sonho, a casa do meu bisavô estava intacta, como era na minha infância, só que ainda mais mágica. Ficava num terreno muito maior, sombreado de árvores frutíferas que protegiam personagens mansos e amáveis. No sonho, havia lindos bebês louros, adolescentes amorosos, velhos felizes. Foi como uma viagem de resgate ao passado em que eu pudesse reconstruí-lo da forma idealizada que encontramos nos filmes - e nos sonhos.
O pátio fresco de folhas e frutos acolhia-nos cheio de proteção e sossego. E havia uma paz de quem encontra, finalmente, um colo.
A casa do meu bisavô, é claro, está escondidinha aqui no meu inconsciente, com todas as lembranças e os desejos de reparação dos meus afetos.
Mas que beleza os sonhos - neles podemos realizar o que mais nos falta e envergar os desejos como lanças e faróis, abrindo caminho em direção à felicidade.
Que bom sonho. Me acalentou, me deu sossego.

domingo, 17 de maio de 2009

TIRO

Pendurou a esperança no gatilho e puxou. O estampido era mais seco e menos barulhento do que esperava. E não era que nem os filmes que assistia pela tevê. Era muito mais solitário e assustador. Além disso, não tinha música de fundo.
O corpo do moleque magrinho curvou-se para trás e depois foi desmoronando devagar feito um saco vazio. Tombou. Até que fora fácil. Matara o ladrãozinho - e não se sentia herói. Só mais esperto. Depois levou a arma até a mesa e ficou pensando o que fazer nos próximos minutos. Tentou se lembrar dos filmes e ligou para a polícia.
Tinha 18 anos e queria ser engenheiro, como o pai. O vestibular daqui a alguns meses o assustava mais do que o crime que acabara de cometer. Afinal, guerra é guerra, mas esta se ganhava com rapidez, sangue frio e pontaria. A outra, a do vestibular, era imponderável.
O filme do Bruce Willys não saía da cabeça. Ficou esperando a viatura sentado no degrau da frente. Depois, abriu um saco de Doritos e empanturrou o estômago oco. Mais Coca-Cola.
Para a polícia mais tarde, explicou que o moleque invadira a casa armado e que o pai lhe ensinara a atirar. Fins de semana no sítio, latas vazias, como nos filmes. Só então lembrou do celular da família em férias e contou tudo, primeiro pra irmão mais velho que atendeu lá da praia, depois pro pai que o chamou de “meu herói” e resolveu tudo com o delegado, amigo de pôquer.
A perícia examinou um pouco e depois levou o corpo do moleque sem nome. A vizinhança se alvoroçou, mas evitou intimidades. Foi cada um cuidar da vida.
Viu um pouco de televisão, fez um baita sanduíche e se enfiou outra vez nos livros. Vestibular era guerra pra gente grande.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Os Chapéus do Meu Avô

Meu avô tinha três chapéus. Um Panamá claro que sombreava seu rosto gorducho e vermelho, protegendo-o das agruras do verão canicular; um de feltro tom de tabaco, muito metido à inglês, que meu avô ostentava em noitinhas raras e frias; e finalmente, guardado no armário de cedro, um chapéu côco, preto, impossível na vida real. Duvido que jamais o tenha usado. Meu avô tinha dessas coisas – chapéus de cinema e uma certa arrogância própria das barrigas bem sucedidas.
Apesar de viver numa província empoeirada de terra vermelha, envergava um terno de linho 120 branco com a naturalidade dos coronéis tropicais. Jamais vestiu outro traje que não fosse composto pelas calças mambembes e o folgado paletó sobre a camisa impecável. Tudo imaculadamente branco.
No tanque e no ferro de engomar, minha avó ou alguma das pretas que povoavam a cozinha davam conta de traze-los como manda o figurino. Mesmo porque meu avô, apesar de bem humorado e bonachão, era de uma exigência atroz quando se tratava de roupas.
Tinha olhos muito verdes, quase felinos, apreciava bons vinhos, conversas de alpendre e mesa farta, servida por receitas peninsulares. Brodos fumegantes salpicados de massa fresca faziam-no suar a camisa que era trocada várias vezes ao dia.
Ria uma gargalhada estrondosa e amealhava amigos com raro poder de sedução. Além disso, devia ter uma aguda inteligência já que, apesar do pouco estudo, falava fluentemente o francês e lia os filósofos, arrebanhados semanalmente na imensa biblioteca de um amigo advogado.
Era assim o meu avô, promessa de uma vida imigrante e campesina, tornada urbana, quase sofisticada, a poder de muita obstinação. Nascido napolitano, viajara para o Brasil ainda menino e aqui mudara o destino que haviam lhe traçado. Exibia uma letra rebuscada e perfeita em suas volutas e arabescos, qualidade que lhe rendeu a profissão de guarda-livros.
Dormia quatro horas por noite. Madrugada ainda, enfiava-se no terno e metia-se na padaria do compadre Rodrigues logo ali na esquina. A primeira fornada de pãezinhos aspergia seu perfume por todo o quarteirão e ele subia a ladeira com o saco de pão num braço e o Estadão no outro. Devorava ambos com prazer similar.
Tudo que sei do meu avô me foi contado por relatos familiares esparsos ao longo da vida. Guardo fotos em que ele me carrega no colo, encantado com os cachos e as bochechas da única neta que conheceu. Guardo igualmente lembranças daquilo que não vivi, como se o tivesse conhecido íntima e profundamente.
Meu avô, seus chapéus e sua eloqüência acabaram-se prematuramente no fundo de um rio, depois de uma curva matreira que expulsou da estrada de terra o carro e todos os seus ocupantes. Era noite, estava frio e eu, que só tinha um ano, nem pude chorar a morte do meu avô.

Órfãos de Boal

Há uns mil anos mais ou menos, me vi um dia, de repente, com um grande frio na barriga, munida da minha cadernetinha de repórter, entrando no Teatro Eugênio Kusnet, antigo Arena, em São Paulo, onde iria entrevistar o, àquela altura, já famoso Augusto Boal. Ele estava de passagem pelo Brasil para montar algum trabalho. Morava na Europa e já andava pelo mundo espalhando a fecunda semente do seu Teatro do Oprimido e fascinando qualquer cidadão minimamente sensível aos problemas da humanidade.
Passei a tarde vendo seu ensaio e conversando com ele que, como todo gênio, era extremamente doce e humilde diante da minha inexperiência de quase menina, foquinha de redação.
Foi um dos grandes momentos da minha carreira jornalística. E não falo do ponto de vista profissional, apenas. Boal foi um dos entrevistados que acrescentou milhares de pontos à minha vida, à compreensão que eu passei a ter do mundo, aos conceitos que, devagar, iriam construir meu edifício interno.
Naquela tarde chuvosa e tão paulistana, passei a compreender que é possível, sim, transformar sonhos em realidade; é possível e desejável transgredir os limites do razoável e ousar o inesperado, o novo, o arriscado.
Boal ia me contando como nascera o seu projeto, como aos poucos, grupos de comunidades carentes passaram a encenar seus problemas, questões, dores, dúvidas, alegrias e se transformavam em atores da vida, neste grande palco em que ele transformou o mundo, auxiliando pessoas a se tornarem cidadãos; utilizando o teatro como ferramenta de superação e transformação.
E eu ia mergulhando em suas palavras, embevecida. Apaixonei-me. Não pelo homem, que já me parecia então uma mistura de anjo e missionário com aquela basta cabeleira e olhos de quem acredita. Apaixonei-me pelo ator, diretor, cidadão, companheiro. Adivinhei naquele momento todas as possibilidades que se abriam para a minha própria vida, então tão iniciante.
Sai daquele teatro agradecida, como aconteceu algumas vezes, por tamanho presente.
Esta semana, Boal nos deixou e senti-me um pouco órfã, um pouco viúva, mais sozinha. Pessoas como ele são cada vez mais raras neste mundo tão higienizado, inidividualizado, mercantilizado, ausente, sem compromissos. Li no jornal uma linda entrevista que concedeu pouco antes de morrer. Nada mudara. Seus ideais e sua atividade mantiham-se inteiros e emraizados, espalhados pelo mundo, alcançando os lugares mais distantes do planeta, multiplicando-se em outros grupos, em mais idéias, agora levados adiante por seu filho e discípulo.
Chorei pelo adeus do Boal, por nós, tão pobres e incapazes longe dele.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

TEXTOS NEM TÃO NOVOS ASSIM E UM PRESENTE DO FREI BETTO

O Lau, amigo atento, me deu uma bronca carinhosa pelo abandono em que andava este blog. Com razão. Enviou-me sugestões: textos meus, já publicados em jornal, mas que considera atuais (com o que concordo) e um belíssimo texto do Frei Betto (redundància) - presente e ensinamento para todos nós. Aí vão:

ENSINA TEU FILHO - FREI BETTO (publicado no Estadão)

Ensina a teu filho que o Brasil tem jeito e que ele deve crescer feliz por ser brasileiro. Há neste país juízes justos, ainda que esta verdade soe como cacófato. Juízes que, como meu pai, nunca empregaram familiares, embora tivessem filhos advogados, jamais fizeram da função um meio de angariar mordomias e, isentos, deram ganho de causa também a pobres, contrariando patrões gananciosos ou empresas que se viram obrigadas a aprender que, para certos homens, a honra é inegociável.
Ensina a teu filho que neste país há políticos íntegros como Antônio Pinheiro, pai do jornalista Chico Pinheiro, que revelou na mídia seu contracheque de parlamentar e devolveu aos cofres públicos jetons de procedência duvidosa.
Saiba o teu filho que, no monolito preto do Banco Central, em Brasília, onde trabalham cerca de 3 mil pessoas, a maioria é honrada e, porque não é cega, indignada ante maracutaias de autoridades que deveriam primar pela ética no cargo que lhes foi confiado.
Ensina a teu filho que não ter talento esportivo ou rosto e corpo de modelo, e sentir-se feio diante dos padrões vigentes de beleza, não é motivo para ele perder a auto-estima. A felicidade não se compra nem é um troféu que se ganha vencendo a concorrência. Tece-se de valores e virtudes e desenha, em nossa existência, um sentido pelo qual vale a pena viver e morrer.
Ensina a teu filho que o Brasil possui dimensões continentais e as mais férteis terras do planeta. Não se justifica, pois, tanta terra sem gente e tanta gente sem terra. Assim como a libertação dos escravos tardou, mas chegou, a reforma agrária haverá de se implantar. Tomara que regada com muito pouco sangue.
Saiba o teu filho que os sem-terra que ocupam áreas ociosas e prédios públicos são, hoje, chamados de "bandidos", como outrora a pecha caiu sobre Gandhi sentado nos trilhos das ferrovias inglesas e Luther King ocupando escolas vetadas aos negros.
Ensina a teu filho que pioneiros e profetas, de Jesus a Tiradentes, de Francisco de Assis a Nelson Mandela, são invariavelmente tratados, pela elite de seu tempo, como subversivos, malfeitores, visionários.
Ensina a teu filho que o Brasil é uma nação trabalhadora e criativa. Milhões de brasileiros levantam cedo todos os dias, comem aquém de suas necessidades e consomem a maior parcela de sua vida no trabalho, em troca de um salário que não lhes assegura sequer o acesso à casa própria. No entanto, essa gente é incapaz de furtar um lápis do escritório, um tijolo da obra, uma ferramenta da fábrica. Sente-se honrada por não descer ao ralo que nivela bandidos de colarinho branco com os pés-de-chinelo. É gente feita daquela matéria-prima dos lixeiros de Vitória que entregaram à polícia sacolas recheadas de dinheiro que assaltantes de banco haviam escondido numa caçamba.
Ensina teu filho a evitar a via preferencial dessa sociedade neoliberal que nos tenta incutir que ser consumidor é mais importante que ser cidadão, incensa quem esbanja fortuna e realça mais a estética que a ética.
Saiba o teu filho que o Brasil é a terra de índios que não se curvaram ao jugo português e de Zumbi, de Angelim e frei Caneca, de madre Joana Angélica e Anita Garibaldi, dom Hélder Câmara e Chico Mendes.
Ensina a teu filho que ele não precisa concordar com a desordem estabelecida e que será feliz se unir àqueles que lutam por transformações sociais que tornem este país livre e justo. Então, ele transmitirá a teu neto o legado de tua sabedoria.
Ensina teu filho a votar com consciência e jamais ter nojo de política, pois quem age assim é governado por quem não tem e, se a maioria tiver a mesma reação, será o fim da democracia. Que o teu voto e o dele sejam em prol da justiça social e dos direitos dos brasileiros imerecidamente tão pobres e excluídos, por razões políticas, dos dons da vida.
Ensina a teu filho que a uma pessoa bastam o pão, o vinho e um grande amor. Cultiva nele os desejos do espírito. Saiba o teu filho escutar o silêncio, reverenciar as expressões de vida e deixar-se amar por Deus que o habita.

ACENDAM A LUZ

Tudo bem. Com o avanço da idade nossa visão vai diminuindo, mas juro que não é esse o caso. O caso, leitores, é que esta cidade está cada vez mais escura. Experimentem sair de casa depois que anoitece, verifiquem com seus próprios olhos - velhos ou novos. A coisa tá preta.
Não sei se é o tipo de iluminação, se o número de lâmpadas, sei lá. Não entendo disso. Mas que está escuro, está. Os bairros, principalmente, mergulham numa penumbra assustadora logo à noitinha e mais parecem becos saídos de romances do século dezenove.
Romântico, você pode argumentar. Digamos que sim, mas convenhamos, não há romance que resista ao breu reinante, numa época em que qualquer passeio noturno pode acabar em B.O na delegacia. E depois, minha gente, cidadezinha com praça, coreto e lampião de gás é muito bonito mas não combina mais com uma cidade de 600 mil habitantes, que se pretende moderna e contemporânea.
É irônico esse monte de Banco, loja de grife, shopping, restaurante, carro importado e o pessoal apertando o olhinho pra poder enxergar uma placa, um cachorro ou um simples mortal que atravessa a rua.
Avisem-me se o problema for de natureza oftalmológica. Mas garanto que meu médico é competente, meus óculos estão em dia e a cidade está escura. Na frente da minha casa, por exemplo, tem aquele poste imenso, com aquele chapeuzinho lá em cima, e uma luz fraquinha que dá pena. O modelo da tal luminária e a potência de sua lâmpada são do tempo do zagaia ( quando, aliás, usava-se expressões como esta).
Hoje, a quantidade de neons, luminosos, bares, biroscas que se amontoam em cada esquina ofuscam a já fraca iluminação pública. Ou seja, a proliferação de mídias luminosas não só polui o ambiente, embaralha os sentidos e desorienta o cidadão, como neutraliza o que deveria ser claridade pura e simples. Claridade para segurança, beleza, alegria, orientação de quem ainda gosta de percorrer as ruas da cidade. Acendam a luz, por favor. Caso contrário, nosso única saída será a féerica e insuportável iluminação dos shoppings.

DOMINGOS ANTIGOS

Domingos antigos abrigavam alguns rituais. Um deles era a missa, garantida pela severidade familiar, abrigando as cabecinhas virgens com mantilhas de renda branca e acompanhadas por terços de madrepérola e missal pretinho. Lá íamos nós, boca amarga de jejum forçado, olhos sonados e remelentos, todos os pecados confessados na véspera, receber a eucaristia. Não que entendêssemos perfeitamente o que isso significava. Afinal, mistérios como o da Santíssima Trindade ou da transmutação de hóstia em corpo crístico não eram lá coisas para crianças. De certo e garantido, sabíamos que não podia morder. Pecado mortal. Então engolíamos a delicada partícula de farinha e água com respeito e algum temor.
No mais, havia sempre a promessa do café da manhã. Pão quentinho, manteiga escorrendo pelas bordas, leite gordo de natas, sequilhos, rosquinhas , pão-de- ló, bolo de fubá. Depois, tirar os vestidos de lese e as fitas do cabelo, e rua. Brincar até cansar.
Acreditem jovens leitores, não havia televisão – nem computador, vídeo-cassete, DVD, celular, shopping-center. Sobrevivemos a essa falta com galhardia e, arrisco até, com algumas vantagens. A sobrevivência estava diretamente ligada ao grupo. Brincávamos, jogávamos, aprendíamos na marra a interagir, superar obstáculos, amargar as derrotas, partilhar as vitórias. Crescíamos olhando o outro e dividindo a vida com ele. Amarelinha, pula-sela, bolinha de gude, pique-esconde.
Desconfio que esses territórios lúdicos e dominicais foram responsáveis em grande parte pela formação do caráter de algumas gerações. Alí, entre batalhas de bola e terra, definíamos nossos talentos e aptidões, conquistávamos ou perdíamos espaços preciosos, barganhávamos vantagens, conhecíamos limites físicos e éticos. Dali saíam os craques de futebol, os heróis de briga, os articuladores, os covardes, os sedutores. Quem pisar depois da linha, a mãe não é séria. E ninguém pisava.
Bons domingos em que nos lambuzávamos de pirulitos-puxa de açúcar e picolés de groselha que, em minutos, transferiam o carmim do sorvete para nossas bocas e bochechas. Domingos de árvores, córregos, carrinho de rolemã, bonecas de pano - porque presentes de verdade, só no Natal e aniversário.
Aos adultos eram reservados outros prazeres, como jogar conversa fora sob as árvores do quintal ou em cadeiras enfileiradas na calçada. Conversas de gente grande, em que criança não entrava. Dos adultos também, a prerrogativa inquestionável de comandar nossos prosaicos destinos infantís. “Hora do banho!”, alguém gritava. E acabou-se a brincadeira. Depois, a sopa quente, pijama e cama. Com direito a histórias de avó e cafuné.
Domingos inocentes. Nem melhores, nem piores. Apenas diferentes.

A CULPA É DA MÍDIA

De uns tempos para cá, virou moda. Tudo o que acontece no planeta tem como única responsável, a mídia. A mídia, essa jovem senhora tão cheia de afazeres e qualidades, transformou-se numa espécie de entidade maligna, num ser onipresente e onipotente, com vida própria e um poder de manipulação que deixa qualquer Big Brother no chinelo.
Como todo mundo sabe, “mídia” é a denominação emprestada dos norte-americanos para qualquer meio de comunicação – tevê, rádio, internet, revista, jornal, enfim todos os meios, eletrônicos ou não, de comunicação disponíveis para a sociedade. Ou seja, a mídia é só o meio, o canal de comunicação, através do qual são veiculados produtos, idéias, informações. De jornalismo a besteirol; de documentários a bundas e peitos; de clássicos do cinema a programas de auditório; de produtos de consumo a política ou cartas de amor, tudo ou quase tudo hoje em dia é comunicado através das mídias.
Mídia, portanto, senhoras e senhores, é apenas o veículo que transmite conceitos e idéias. Não existe em si. Não tem ideologia, não cria nem produz absolutamente nada, ou seja, não tem responsabilidade nenhuma sobre o que acontece no mundo. Os responsáveis por aquilo que a mídia expõe somos nós, é a sociedade, que comunica, através da mídia, desde marca de sabão até programa político e guerra no Iraque. E, mais importante, somos nós também que escolhemos consumir ou não aquilo que a mídia divulga.
Mas não adianta. Virou um bordão - e uma bela desculpa para explicar tudo o que está errado. O filho é um insolente, preguiçoso, inútil? Culpa da mídia. A criancinha rasga o sofá, vomita no tapete e atormenta as visitas? A mídia. O pessoal mata, estupra e rouba cada vez mais? Pode saber que é a mídia. A família não conversa a não ser para trocar insultos? Não dá outra, a mídia. A moçada não lê nem bula de remédio? É a mídia. O mundo está uma porcaria, violento, auto-centrado, individualista, deprimido? A mídia, a mídia, a mídia. As pessoas consomem em vez de pensarem? Claro, a mídia.
Afinal, sempre foi muito mais fácil transferir nossas responsabilidades para o outro. E o Outro, agora, é a coitada da mídia, o grande bode expiatório da pós-modernidade. Antigamente, o casamento não dava certo por culpa do marido ou da mulher, nunca da gente. O filho estava malcriado ou tirava notas baixas por causa das companhias, não porque não tinha atenção em casa. O assaltante roubava porque era malandro ou mau-caráter. Enfim, o problema era dos outros. E continua sendo. Só que agora encontramos um único responsável por todas as mazelas e incompetências pessoais e sociais: a mídia.
É bom lembrar que por trás da tevê, do jornal, da revista existe gente. Que por trás dessa gente existem interesses, ideologias e principalmente anunciantes que patrocinam os conteúdos veiculados na mídia, de acordo com o sucesso ou fracasso do que é veiculado. E quem determina esse sucesso ou fracasso somos nós. Quem passa horas por semana assistindo a programas de quinta categoria na tevê ou lendo revistas que só se preocupam com a vida sexual de artista de novela, não pode reclamar de mídia nenhuma. Tem é que refazer seus conceitos sobre lazer e informação. Ou então conformar-se em viver numa sociedade cada vez mais banalizada.
É claro que num país com baixíssimos níveis de educação como o nosso, a mídia acaba tendo força de manipulação. Mas daí a responsabilizar os meios de comunicação pela educação social há uma longa distância. Eu sou da turma que ainda acredita que educação e princípios se aprende em casa; que a violência começa na sala de jantar ou na falta de oportunidade de se tornar um cidadão digno; que a falta de ética é ensinada por aqueles pais que acham engraçado passar os outros pra trás e votar em político corrupto; que a obsessão pelo consumo não é criada pela propaganda, mas por pessoas que associam felicidade com carro novo.
Mídia é espelho. O que estamos vendo, ouvindo ou lendo diariamente é só um reflexo – às vezes triste – do mundo que criamos para viver. Transformá-lo é tarefa nossa. Garanto que a mídia vem atrás.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A ERA DO RÁDIO

Minha avó ouvia novelas pela rádio Nacional. Era religioso – tardes suarentas e silenciosas, cortadas pelos dramas soluçantes que reverberavam nos cômodos vazios. Choro, ranger de dentes e Colgate/Palmolive de quebra, na hora do “reclame”. Donzelas, vilões, galãs incitando a imaginação parva e sonolenta das donas de casa.
Heróis e vilões imaginados - ninguém nunca viu o galã ou pressentiu o rosto da heroína. Sabe-se lá se o mocinho era um nanico desdentado, ou a princesa, uma gordota horrorosa? Ouvindo-os, apenas, imaginávamos um mundo idealizado segundo as fantasias de cada um e alimentados por apitos de trens, passos na calçada, bater de portas e pela música orquestrada ao fundo.
O rádio era, então, um móvel de sala. Imenso, alimentado de válvulas e chiados por trás dos quais tentava-se decifrar a empostada voz dos locutores irradiando notícias no Repórter Esso ou transmitindo futebol numa velocidade absurda. Sem contar os programas musicais, quando se aguçava os ouvidos e as emoções ao som de orquestras de jazz.
Foi pelas ondas do rádio que aprendi a ouvir os agudos de Ângela Maria e os malabarismos vocais de Cauby nas intermináveis tardes de verão – cozinha ladrilhada e alguém batendo um bolo.
Dos programas de auditório, guardo uma lembrança pessoal e um tanto nebulosa. Mas não foi sonho, não. De vestidinho de organdi pinicando meus quatro anos, e um descomunal laço de fita na cabeça, me vi num domingo de manhã no palco da rádio local trinando “Ai lili, ai lili, ailô” com um imenso oco no estômago. Vertigem, calor de rachar. Mas a Célia, que cuidava de mim com o desvelo das mães postiças, aplaudia orgulhosíssima na platéia apertada. Nos seus sonhos mais loucos, eu provavelmente me transformaria numa nova Sapoti.
Mal sabia ela que um dia, não muito distante, a era delicada e sonolenta do rádio se despediria de nossas vidas. Assim como os locutores impostados, os galãs imaginados, as orquestras de jazz – a própria Célia, que iria embora junto com a minha infância.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

SOMBRA E ÁGUA FRESCA


(Este texto foi publicado há algum tempo no jornal A Cidade. Acho que vale a pena repetir)

Nos idos dos anos 50/60, elas sombreavam quase todas as ruas da cidade. Enfileiradinhas, bem comportadas, a copa não muito grande fazia uma espécie de abóboda protetora sobre nossas cabeças, guardando-as da canícula que já castigava Ribeirão.
Não me lembro do nome. Sei que suas folhas eram rijas, alongadas, brilhantes e seus galhos traziam cachos de bolinhas verdes que eram a delícia dos moleques e seus estilingues. Até hoje me lembro da sensação que a nervura central da folha provocava nos dedos e do barulho que fazia ao quebrar-se em duas.
Essas árvores acompanharam minha infância e adolescência, tempo em que caminhávamos muito mais a pé do que de automóvel. Mas as ruas, então, dormiam frescas nas horas sonolentas da tarde. Sob seus galhos brincamos de amarelinha, pega-pega, pique, queimada, betsi. E à noite ainda protegiam os casais de namorados do olhar reprovador da rígida moral vigente.
Acreditem. Ribeirão Preto já foi uma cidade verde. E não eram só as árvores de calçada, mas as praças que, então, existiam em número suficiente para abrigar a população e, claro, o Bosque Municipal, onde todo mundo ia passear aos domingos.
Aí a cidade cresceu. E esqueceram-se das árvores. Centenas de ruas rasgaram a paisagem em todas as direções. Bairros inteiros nasceram, cresceram, transformaram-se, verticalizaram-se. Mas as árvores tornaram-se cada vez mais raras. Quaresmeiras, Sibipirunas, Chapéus de Sol, Paineiras com suas copas imensas e suas cores pontilhando os verões intermináveis foram rareando até quase desaparecer.
Hoje em dia, atravessamos quarteirões inteiros sem uma única árvore; percorremos bairros sem praças e, com a deliciosa exceção do Curupira e de mis um ou dois, ainda com árvores franzinas, carecemos de parques públicos. Não tenho comigo os números, mas a porcentagem de verde por habitante em Ribeirão é vergonhosa e está muito abaixo daquela determinada pela ONU – ao contrário de cidades como Araraquara ou Curitiba, onde os índices de verde são mais que suficientes.
O resultado, além do calor cada vez mais insuportável, é o desequilíbrio ambiental, a oxigenação diminuída, o ar sufocante e, não menos importante, a ausência de locais de lazer e encontro para a população.
Não sei se a idéia é viável, mas algum vereador de boa vontade podia propor uma lei que obrigasse os proprietários de imóveis a plantaram árvores a cada X metros em suas calçadas. As mudas poderiam ser cedidas pelo Horto Municipal. E quem não cumprisse a lei, pagaria uma multa no IPTU. Não me parece difícil. Afinal, qualquer cidadão pode plantar uma árvore – não pesaria para ninguém e todos se responsabilizariam pela saúde e a beleza da cidade.
É uma idéia. No mínimo porque sombra e água fresca é bom e eu gosto.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sobre Páscoas

Quando crianças, adivinhamos orelhas e bigodinhos por trás das moitas do jardim. Depois nos lambuzamos de alegria, certos de que a vida é uma grande surpresa de chocolate a nos acolchoar a alma. Aos poucos, vamos descobrindo que ovos de Páscoa também podem ser vazios, ocos como quase toda ilusão de permanência.
Ovos de chocolate também acabam; desmancham-se, sorvidos pela voracidade e a gulodice da juventude. Às vezes acreditamos que a felicidade se encontra em ovos de Páscoa. Que nada – só um breve instante de viscoso prazer.
Mas existe doçura e gostosura dentro de nós. Nesta alminha esquecida pelos anúncios de publicidade; neste pedaço que não se mostra nas vitrines. É lá que podemos buscar o doce da vida. Em pequenas gotas – como convém aos sábios, aqueles que conhecem a paciência, a delicadeza e a inutilidade das grandes expectativas.

sexta-feira, 6 de março de 2009

O ESTADÃO

Assino o Estadão há décadas, depois da fase Folha. E explico por que: Porque é mais jornal, mais bem feito, com texto e reportagens muito melhores. A Folha, depois da famosa reformulação em que tirou da redação as melhores cabeças do país e colocou nas editorias um monte de focas petulantes, adotou alguns princípios, em minha opinião, no mínimo duvidosos. Um deles, o Manual de Redação que transformou bons textos e estilo em parágrafos milimetrados e pobres, para dizer o mínimo. Quem gosta de bom texto, torce o nariz. E como disse certa vez o grande Alberto Dines, jornal é pra quem gosta de ler. Fazer jornal para agradar a moçadinha que não sabe ler, com 10 retrancas e 5 infográficos por matéria - além de um texto pobre e pouco profundo- é um desrespeito ao velho e bom jornalismo impresso. A televisão e a internet estão aí pra quem engole pílulas rápidas e indolores. Salve a (tímida) volta do jornalismo literário em iniciativas como a Piauí.
Pois bem, com tudo isso, eu andava desanimada com o time de cronistas do Estadão - pesado, redundante, chatinho mesmo. E não é que deram uma chacoalhada na equipe de cronistas e colunistas, com um grupo de tirar o chapéu? Leio-os diariamente com enorme prazer - dos novos, como Antonio Prata, Vanessa Bárbara e Fred Mello Paiva, aos textos maduros e encorpados de Lúcia Guimarães e Milton Hatoun. Isso só pra citar alguns.
Ler essa moçada, principalmente, me dá um novo alento. Esses escritores da geração da minha filha são uma clara demonstração de que há vida inteligente no planeta. E melhor: com outros códigos e uma adrenalina invejável. Parabéns, Estadão.

Goiaba tem bicho

O gemido enjoadinho do gancho da rede no vai e vem da tarde em brasa. Fora isso, silêncio modorrento. Vez em quando, um latido longe, preguiçoso. E nenhum piu de passarinho enfeitando a preguiça.
Lá de cima, a sombra mansa da copa da goiabeira contorna a paisagem, arremata. Espalhada pelo quintal, a velha árvore guarda o cochilo da casa, e mancha que nem onça parda as volutas dos galhos grossos e seguros – ponto de apoio, esconderijo, dente na carne macia, sem medo do bicho. “Bicho de goiaba é goiaba, uai”.
Nem é preciso mais nada, a não ser a adivinhação do tacho lá no fundo, reluzindo ouro no sol da tarde, rasgado nas rebarbas pela pá de madeira mergulhando na polpa madura, buliçosa, escarlate. Tem cheiro esta tarde de goiabeira-goiaba-goiabada. E ele fende as narinas até o coração. Gruda no oco do estômago, antecipando-se doce; alinhava o canteiro de margaridas, o galinheiro, a parede descascada. Nem mesmo o jasmineiro carregado perfuma mais.
Uma alegria danada bulindo os sentidos; pés encardidos, vestido curto, pescoço suado e a certeza absoluta de que os anjos da guarda lá da matriz fogem do altar nestas tardes doces; aqueles gorduchos, lambendo os beiços.
Lá dentro, a cozinha já deve estar limpa e quieta, chão úmido de cera, paninho engomado sobre o fogão. Logo, logo alguém vai bater um bolo, tirar o queijo do guarda-comida e coar café no bule areado. Depois, vai ter burburinho de bocejos e causos em torno da mesa de madeira.
Hora do lanche. Pretexto pra jogar conversa fora, dar risada, implicar.
Na rede sob a goiabeira, estico um pouco mais as frinchas da tarde, prolongo um cochilo fingido até me dobrar de rir com as cócegas e os beijos de vó me chamando.
Não quero virar gente grande, não.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Allen em Barcelona

Olá amiguinhos, mais cinema: fui ver Vick, Cristina, Barcelona, do delicioso Woody Allen e como não poderia deixar de ser ele se torna a cada dia um contador de histórias mais sedutor e eficiente.
As histórias em si são comuns, de gente como nós, que estão aí na vida pra ser feliz, se atropelando, mas tentando, tentando. O jeito de contar uma história, pórém, é que são elas. Este é o segredo de todas as Sherazades, os vocacionados para a narrativa, como é caso do cineasta.
Numa ensolarada e belíssima Barcelona - que ele explora com olhar poético e vibrante-, casais se encontram e desencontram - desta vez com uma pontinha de homenagem a Almodovar, nas cenas pateticamente passionais protagonizadas pela espanhola Penélope Cruz.
Delícia de lavar a alma. Beijos

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Faz de conta que é Hai-Kai

Num delicioso curso que fiz há mil anos com a Alice Ruiz sobre Hai-Kai, aprendi que esta forma de poema oriental, derivada da contemplação e meditação budistas , tem, entre outras regras, um número certo de sílabas em cada um de suas três linhas. É claro que eu raramente consigo limitar-me ao número correto, mas não faz mal. Às vezes, contemplando a natureza em minhas andanças no parque, vem um "quase hai-kai":

No espelho do lago
dois peixes vermelhos,
namorados.

Beijos

A dor de ser humano

Então, falávamos de cinema e é preciso um espaço especialíssimo para o último trabalho do Sam Mendes e da incrível Kate Winslet, "Foi apenas um sonho" . A começar pelo título em inglês, (Revolutionary Road), de uma ironia fina, própria do diretor. De revolucionária aquela vida não tem nada - assim como não tem a maioria de nossas medíocres e ilusórias existências. E é disso que o filme fala- com o brilho que o diretor já mostrara em Beleza Americana. Trata-se de uma
implacável reflexão sobre o vazio que nos acompanha do nascimento à morte e que tentamos desesperadamente preencher consumindo sonhos materiais, afetivos, sociais, profissionais, religiosos ou seja lá qual for. A casa de subúrbio (ou de condomínio, no Brasil), os filhinhos lindos, a carreira bem sucedida, a esperança da viagem fantástica e, o pior: a certeza de que somos brilhantes, diferentes, especiais- mas que nem mesmo assim conseguimos nos livrar do "vazio sem esperança" que nos acompanha, como define o perosnagem mais lúcido da história ( o "louco", como não poderia deixar de ser).
Acho que muita gente vai torcer o bico para o filme. Afinal, não é todo mundo que encara o monstro de frente e aprende (pelo menos um pouquinho) a lidar com a impotência de saber-se humano apenas - com todas as impossibilidades que isso acarreta. Para esta turma- que continua a acreditar que o carro do ano, ou a tese de doutorado, ou o salário de executivo ou o "grande amor da minha vida" são receitas de felicidade- o filme pode parecer "chato" ou "pesado". Na minha modesta opinião, o Sam Mendes é gênio. E sabe como poucos falar com sutileza e elegância dessa dor que nos pertence inevitavelmente.
Beijos

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Um Carnaval cinematográfico

Terça-feira gordíssima, sem grandes possibilidades, a não ser as que nos justificam sempre: cinema, leitura da boa e gente de qualidade.
Pois bem, confirmei nos últimos dias que ainda se faz excelente cinema nos EUA. O Curioso Caso de Benjamim Buttom é cinema de primeira, com a qualidade adicional de escolher o caminho da delicadeza, dos encontros sutis, da economia elegante para reescrever essa história fascinante. Sem falar no Brad cavalgando naquela moto, que aí também já é covardia.
A Troca, outro exemplo de que a família Pitt/Jolie não está pra brincadeira, também emociona com uma história verídica daquelas improváveis de tão absurda e com a fantástica interpretação de Angelina Jolie,como sempre dando banho.
Slumdog Millionaire - delicioso, pungente, emocionante. Uma curiosa e bem sucedida mistura de Cidade de Deus com conto de fadas bollywoodiano. Adorei.
Operação Walquíria vale pela história, pela boa direção e excelente casting - apesar do esforçado Tom Cruise.
Exceção para Austrália (Argh!), uma sucessão de equívocos, da direção ao trabalho dos atores. Insosso, inodoro e incolor, apesar da estupenda paisagem, dos figurinos impecáveis da linda Nicole Kidman ( que não faz juz ao seu talento) e daquele monumento do Hugh Jackman que, por sinal, deu um show à parte na apresentação do Oscar. Mostrou que não é só bonito - canta muitíssimo bem e dança como gente grande. Bem, já é mais que a maioria.

Quanto às leitura, tenho descoberto (meio tarde, eu sei) o português Lobo Antunes. Vale abrir suas páginas. Assim como há alguns anos abri as do moçambicano Mia Couto e nunca mais fechei. Agora falta chegar no angolano Agualuza - ou seja, nosso idiomazinho complicado tem bastado para encher os olhos e o coração de alegria.

Como se vê, Carnaval também é bom para os não-foliões de carteirinha.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Ritmo da Máquina de Costura

Um dos objetos mágicos para me transportar de volta à infância é uma velha máquina de costura "Elna", verde cor de abacate, que até hoje se abre reluzente e operosa sobre a mesa da cozinha da casa da minha tia.
Contando, seguramente, mais de quarenta anos, ela é de uma eficiência e praticidade que faria inveja a muito "design" moderninho. Além de poder ser carregada para todo lado dentro de uma espécie de maleta que, aberta, se encaixa ao corpo da máquina em minutos, a portátil "Elna" transforma idéias e um pouco de dedicação em maravilhas.
De sua afiada agulha já brotaram gerações de vestidos, saias, calcinhas e calções, blusas, blasers e que tais. Conta minha tia — endossada por minha mãe e toda geração antiga da família — que na fidelíssima "Elna" foi costurado o enxoval de duas e de outra dezena de primas e amigas. Meu próprio enxoval de bebê foi cuidadosamente gerado naquele retângulo verde.
Tempo em que se esperava uma criança com a tranqüilidade de noites debruçadas sobre a máquina de costura, recortando linhos, organdís, piquês, babados, intricados pontos "paris" e toda a delicadeza do mundo. Tempo também em que as moças não se vestiam em butiques. Folheavam figurinos garimpando modelos bonitos para serem exibidos na quermesse da igreja ou no "footing" em frente à praça. Outra fonte de inspiração eram as fotos dos filmes em cartaz na cidade. O decote de Rita Hayworth, a saia farta de Doris Day, a cintura de vespa de Ava Gardner. Sonhos transportados diariamente de Hollywood para o interior do Brasil através de uma máquina de costura e, claro, de uma boa dose de talento para a adaptação. Em sua formatura, minha mãe fez questão de uma "Dama das Camélias".
Lá foram ela e minha tia para a porta do cinema estudar detalhadamente o decote da atriz, recortado de camélias brancas que, mais tarde, dariam um tom meio trágico e misterioso ao singelo baile da escola. Se as saias subiam, a "Elna" entrava em ação. Se a cintura descia, recorria-se outra vez à engenhoca. E todo mundo, mesmo com o dinheiro contado, era capaz de fazer bonito numa época em que as mulheres não dispensavam o salto alto, as meias de seda e um "glamour" cheio de drapeados, "tailleurs" e saias justas dos quais morro de inveja.
Fico pensando de onde surgiu esse nome, "Elna", tão misterioso para mim quanto a origem da máquina, que não sei bem se veio da Itália ou da Suiça. A verdade é que sua imagem grudou-se em minha retina e percorre minhas lembranças mais recônditas. Talvez porque, segundo contam, eu, pequenininha, costumava me empoleirar nos ombros dessa santa tia enquanto ela pacientemente costurava. E cantava. Sim, cantar ao fazer algum trabalho mecânico, como costurar, lavar ou passar a roupa é outra tradição da família. E, não me perguntem por que, a música eleita é a antiquíssima "Maringá". Aquela mesma: "Maringá, Maringá/ Desde quando tu partiste/ Tudo aqui ficou tão triste/ Que eu garrei a imaginá...".
Diz a minha tia que, cantando, o serviço fica mais leve e prazeroso. Já experimentei. Funciona. Pois era com sua voz aguda e afinada no coro das "Filhas de Maria" que titia cantava "Maringá", acompanhada pelo ritmo quase silencioso da velha "Elna". Tenho uma saudade quase dolorosa desse tempo. E de um outro tempo que não vivi — apenas sei de ouvir histórias e lamento não ter experimentado. Imagino-me, às vezes, apertada num vestido longo de tafetá, rodopiando ao som de Glenn Miller num daqueles bailes faiscantes de metais e flertes; ou tomando um bonde para a sessão da matinê de cinema; ou ainda sendo cortejada no portão dessas casas com janelas na rua, por um moço "educado e cheio de boas intenções".
Pra falar a verdade, sinto-me às vezes meio traída por não ter pertencido a essa geração pós-guerra, carregada de esperanças, sutilezas, cuidados, segredos bem guardados, casamentos duradouros, homens fortes e masculinos com suas ombreiras e chapéus, mulheres suaves e maternais. Que seja uma grande fantasia. Pouco importa. Olhando hoje para a pequenina "Elna" sobre a cozinha, ou cantando "Maringá" enquanto lavo a louça, penso se não perdemos alguma coisa preciosa no meio do caminho.
Andamos muito, parece, com a modernidade, a tecnologia, a liberação dos costumes, o trabalho feminino remunerado. Pode ser. Mas já não nos permitimos ser a "Dama das Camélias" por uma noite. Cortamos dos nossos filmes pessoais qualquer cena romântica; apressamos e expusemos nossos corpos, antes tão guardados; afiamos nossas "cabecinhas de vento" para enfrentar, competir, esgrimar discursos, antes, só masculinos; esterilizamos nossos úteros com medo de perder o trem da história, veloz, lá fora. Será que somos mais felizes agora?