Palavra da Cá

Este Blog quer partilhar textos literários e nem tanto com vocês.
Vamos trocar poesias, fragmentos e idéias.
Afinal, as palavras nos justificam, não é?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Origami

Para a Fátima Chaguri, minha mais
nova amiga de infância, que sabe fazer
origamis com os pedacinhos da vida.
As Bauíneas florescem no inverno. Guardam na alma um poeta; espocam florezinhas lilazes como origamis, tão bem desenhadas que valem por orquídeas - essas rainhas inacessíveis e temperamentais.
As Bauíneas não. Generosas, enfileram-se nas calçadas mais prosaicas e improváveis, carregando na sua floração a elegância delicada dos desenhos orientais, perfeitos em discrição e silêncio.
Quando os meses de inverno se anunciam, quase duvidosos nesta avalanche tropical, as Bauíneas ousam existir. Cabem, finalmente, na paisagem mais calma e vagarosa dos junhos e julhos. Aí, então, cumprem o seu ofício - colorem quarteirões fresquinhos, como buquês de noiva tímida.
Manhãs de névoa e menta.

Fole Rasgado

Para Paulo e Beth
Naqueles dias Cacilda costumava deixar a sanfona na beirada do fogão a lenha. O fole rasgado não impedia que ela extraísse delicadas melodias francesas do velho instrumento. E ficávamos ali, na pequena varanda sobre o vale, escutando com atenção e lembranças, balançando a cabeça atrás dos compassos e cantarolando baixinho. Éramos, todos os cinco, de um tempo carregado de música e esperança. Acreditáramos um dia poder mudar o mundo. E de certa forma mudamos. Tanto que, beirando os cinqüenta, ainda ouvíamos a velha sanfona e teimávamos em não aposentar o coração. Os fins de tarde nos surpreendiam ainda, sem corromper nenhum dos pactos importantes – nossa emoção era genuína e havia uma alegria quase infantil no aroma de bolo quente, misturado ao cheiro de estrume. Vasinhos de cerâmica colorida enfeitavam a parede. Flores, duas redes, a mesa de mosaico e a sensação cada vez mais nítida de que a felicidade são só esses pedacinhos pinçados aqui e ali ao longo da vida. No mais, viver é muito perigoso, como dizia o poeta. Sabíamos disso. Tínhamos, cada um a seu modo, vivido o bastante para trazer no rosto uma espécie de cansaço cheio de sabedoria e alguma serenidade. Vantagens do tempo - saber que ele corre inexorável, queiramos ou não. E que de nada adianta apressá-lo ou tentar segurar os ponteiros. Eles andam num tic-tac preciso e paciente, marcam-nos o rosto e o coração, rasgam o fole da sanfona. E a quem estiver atento, ensina a segui-lo sem a arrogância de querer controlá-lo. Era isso o que fazíamos naquelas tardes de varanda, bolo de fubá e acordeon. Seguíamos o tempo. E de certa forma, nos vingávamos dos tropeços do caminho ao ouvir a sanfona de Cacilda. Ela era concreta. Assim como o fole estragado, o fogão a lenha, as melodias e esses encontros, confirmando que estávamos vivos.

Bola de Meia

A Ciça borda bolas de meia.
Escolhe-as coloridas e macias e põe-se a desenhar com agulha e linha sobre essas esferas pascoalinas e inesperadas.
Sim, porque ninguém espera que a Ciça se enrosque em bolas de meia e varandas. Afinal, ela é doutora em lingüística e até há pouco tempo carregava sobre os ombros uma cabeça irretocável, onde ninguém adivinharia estes contornos imprevisíveis de linha, fitilhos, sianinhas.
Mas a Ciça surpreende até o mais cético dos filósofos. Carrega a cesta de bolas pela grande casa envidraçada, de onde se avista a paisagem e o tempo de bordar. E percorre o território de malha e lã com a desenvoltura de um posseiro e a graça de quem investe em coisas inúteis – como escrever poesia.
Os poemas da Ciça, ela os cria nas bolas de meia, circundando aquarelas, prespontando geometrias, enfeitando o dia.
Estes enfeites de paciência e mãos de fada não têm tempo nem exatidão. Herança de avó, dispensam análises sintáticas, coerência, coesão. Espalham-se pela tarde de café, pão e manteiga; filho abrindo o coração da gente. Ensinando-nos a alargar os braços e afagar bolas de meia com as mãos.

domingo, 6 de junho de 2010

Amigos

Para o poeta Ricardo Lima, o amigo querido Ricardinho
Meus amigos são poetas. Doces e meigos meninos, todos poetas, apesar do tempo. Apesar de terem caído em desgraça há tanto tempo.
Quem os vê assim, louros, pálidos, sorrindo paixões, escarafunchando o coração sem segredos, costuma apontá-los como loucos. Pois bem, meus amigos, meu mais terno tesouro, são loucos. Ensandecidos, remam pelos caminhos do espírito; e se abraçam, e filosofam, e gostam de cantar melodias francesas à sombra dos lampiões.
Mestres do amor e das palavras, seus corpos pulsam vida por todos os poros. Apaixonam-se, sempre, a cada minuto - por olhos, por causas, por mulheres bonitas, pelos homens do seu tempo.
Guardam, cada um a seu modo, um relógio próprio, com ponteiros que marcam minutos eternos, horas fugazes. Artistas do imponderável, articulam revoluções românticas e bebem muito.
Não trancam suas casas, nunca batem em suas mulheres nem possuem qualquer sentimento de posse que vá além das pequenas neuroses cotidianas. Apegam-se muito mais à estrutura de um verso ou à luz de um quadro do que às cotações da Bolsa - sobre as quais, aliás, nada entendem.
Passaram, todos esses meus amigos, pelos mesmos pedaços que cada homem percorre na vida. Tiveram a boca calada, choraram amores perdidos, sofreram a fome e a humilhação, as distâncias e os grandes encontros. Só não perderam o essencial - o caminho impresso em seus pés quando crianças.
Meus amigos continuam crianças.

Alarme

Eu te amo, você me disse.
Era uma manhã qualquer de maio, entre as notícias do jornal e a paisagem.
Eu te amo. Simples assim. Todas as sílabas perfeitamente escandidas. Claro e preciso como o céu desses meses de outono. Eu segurava uma xícara de café, preguiça de travesseiro, devia ser domingo.
Qualquer coisa de impreciso esticava o tempo sem hora.
Tentei te olhar naturalmente e voltar ao livro em que mergulhara minutos antes, mas você dissera “eu te amo” sem nenhuma solenidade, sem mesmo interromper a insistência do Bem-Te-Vi no quintal.
Voltei minha cabeça sonolenta e surpresa para o ângulo exato do seu perfil. Você estava ali, exatamente como estivera em tantas outras manhãs. A atenção dividida entre uma notícia qualquer sobre armas nucleares e o concerto sinfônico na tevê. Sorriu para mim com uma candura inocente e repleta de boas intenções.
O dia seguiu seu curso.
Nenhum sinal aparente do alarme que desandou a tocar no meu coração.

Margaridas

A quantas anda aquele seu jardim de margaridas amarelas, quase selvagens? Aqueles canteiros que perscruto do outro lado da rua, com inveja, e que você finge não ver, esbarrando na folhagem seus teoremas e fórmulas matemáticas?
Há quanto tempo você o cultiva às escondidas, madrugada adentro, como um ladrão soturno, pensando que ninguém advinha?
Passeio por ali, às vezes, quando você se ausenta. Pressinto vestígios de afeto e mãos pacientes de jardineiro. Mas essas suas mãos eloqüentes não me falam de margaridas. Acompanho seus movimentos que desenham palavras no ar. São mudas. Cobiço, silenciosamente, seus dedos bem feitos de homem.
E eles não parecem apontar para o meu coração.
Ouso a ilusão de assaltar estes limites forjados em canteiros escondidos - ter suas mãos de margaridas se apossando desse meu desejo mudo, impublicável, adolescente.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sol a Pino

Você caminhava na minha direção sob um sol ardido e difuso adivinhando chuvas. Apertava os olhos contra a claridade e era inevitável mergulhar naquele dois risquinhos azuis, abusadamente luminosos, como estrelas diurnas faiscando a arrogância dos seus vinte e poucos anos.
Você e todos os seus encantos. Sua sensualidade soltando as rédeas em terreno proibido. Essa mistura intrigante de poeta lunar e parque de diversões colorido.
Seu braço descreveu um gesto felino e me surpreendeu pela cintura. Bem ali na linha divisória entre a racionalidade e os desejos.
O primeiro impulso era acatar esse abraço. Permitir-me a inocência atordoada da adolescência. Por um minuto eu queria ser uma menininha indefesa, só pra te namorar. Comer pipoca na matinê das quatro, dormir no seu ombro, te beijar com a gulodice de doces escondidos, apaixonar-me com todos os hormônios das primeiras descobertas.
Mas havia aquela tarde tão cotidiana e pública. Havia placas de proibido pisar na grama e todas essas regras de civilidade. Havia sobretudo um longo aprendizado sobre “cavalos soltos pela cama, a passear o peito de quem ama”.
Pensei: eu poderia te amar. E puxei as rédeas. Aprendera a ser cocheiro; a conduzir as minhas viagens com a serenidade de um coração mais paciente e maduro. Descobrira o encantamento de soltar pipas controlando a linha. Nunca mais perder de vista aqueles pedacinhos de papel de seda coloridos - às vezes nuvens, às vezes chão.
Você era um convite ao vôo cego. Asas poderosas, as suas. Capazes de loucos “loopings” em paisagens desconhecidas, frio na boca do estômago. Tentação.
Falei alguma coisa sobre uma pesquisa na biblioteca. Talvez chovesse. Você estava lindo naquela camisa xadrez cheia de promessas. Seguimos em direções opostas. Uma canção do Tom Waits não me saía da cabeça.

Convite

Quem sabe, um pedaço de festa numa dessas noites quentes, inquietantes?
Quem sabe, no ar, um cheiro de cravo e o barulho sossegado das cigarras?
Ou talvez um atalho com cancela, mata-burro, jasmineiro?
Eu faria com você o caminho do vento – sem nenhuma testemunha amedrontando este segredo; sem nenhuma fresta, ou nó. Sem tempo.
Quem sabe um lapso, um descuido no abraço, um soltar-se vagaroso, morno, quase sem vontade? Um ir andando ao lado sem nada que indicasse.
Sem chegar lá adiante, nem parar de medo?
Você vem comigo?
Você descobre pra mim um pedaço de festa, um caminho de vento?

Mambembe

É essa a chance que nos deu a vida.
Carrossel, trem mambembe, circo colorido de horrores, segredo dos iluminados.
Só quem já embarcou nessa viagem conhece as delícias e as agruras que nos reserva o risco do amor.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Domingos Antigos

Domingos antigos abrigavam alguns rituais. Um deles era a missa - garantida pela severidade familiar, abrigando as cabecinhas virgens, protegidas pela mantilha de renda branca. Terço de madrepérola e missal pretinho.
Boca amarga de jejum forçado, olhos sonados e remelentos, pecados confessados de véspera, prontos para receber a eucaristia – mais um dos mistérios que povoavam nosso mundo infantil de temor e fantasias. De certo e garantido, sabíamos que não podia morder – pecado mortal.
No mais, havia a promessa do café da manhã. Pão quentinho, manteiga escorrendo pelas bordas, leite gordo de natas, sem culpa; sequilhos, pão-de-ló, bolo de fubá. Depois, tirar o vestido de lese e as fitas do cabelo, e rua. Brincar até cansar.
Amarelinha, pula-sela, bola de gude, pique-esconde. Território lúdico contando nossa história entre batalhas de bola e terra de onde se revelavam talentos e aptidões. Conquistávamos ou perdíamos espaços preciosos, barganhávamos vantagens, conhecíamos limites físicos e éticos. Desses domingos de quintal nasciam craques de futebol, heróis de briga, articuladores, covardes, sedutores. Quem pisar fora da linha, a mãe não é séria. E ninguém pisava.
Domingos lambuzados de pirulitos-puxa de açúcar e picolé de groselha: carmim na boca e na bochecha. Árvores, córrego, carrinho de rolemã, boneca de pano.
Por perto, as rodas de adultos jogando conversa fora sob a árvore do quintal. Conversa de gente grande. Segredos bem guardados entre aquela gente meio distante, cheia de mistérios por desvendar; detentores da prerrogativa inquestionável de comandar nossos prosaicos destinos infantis. “Hora do banho”, alguém gritava, e acabou-se a brincadeira. Depois, sopa quente, pijama e cama. Até domingo que vem.
Com este texto, terminamos o primeiro caderno do livro "Pequena Pausa Para Um Susto - Historinhas e Fragmentos".
Vamos agora, iniciar o segundo caderno que tem como título: "O Breve Instante do Amor" que é composto pelos seguintes textos: Mambembe, Convite, Sol a pino, Margaridas, Alarme, Amigos, Bola de Meia, Fole Rasgado e Origam.

Os chapéus do meu avô

Meu avô tinha três chapéus. Um Panamá claro que sombreava seu rosto gorducho e vermelho, protegendo-o das agruras do verão canicular; um de feltro tom de tabaco, muito metido a inglês, que meu avô ostentava em noitinhas raras e frias; e finalmente, guardado no armário de cedro, um chapéu côco, preto, impossível na vida real. Duvido que jamais o tenha usado. Meu avô tinha dessas coisas – chapéus de cinema e uma certa arrogância própria das barrigas bem sucedidas.
Apesar de viver numa província empoeirada de terra vermelha, envergava um terno de linho 120 branco com a naturalidade dos coronéis tropicais. Jamais vestiu outro traje que não fosse composto pelas calças mambembes e o folgado paletó sobre a camisa impecável. Tudo imaculadamente branco.
No tanque e no ferro de engomar, minha avó ou alguma das pretas que povoavam a cozinha davam conta de trazê-los como manda o figurino. Mesmo porque meu avô, apesar de bem humorado e bonachão, era de uma exigência atroz quando se tratava de roupas.
Tinha olhos muito verdes, quase felinos, apreciava bons vinhos, conversas de alpendre e mesa farta, servida por receitas peninsulares. Brodos fumegantes salpicados de massa fresca faziam-no suar a camisa que era trocada várias vezes ao dia.
Ria uma gargalhada estrondosa e amealhava amigos com raro poder de sedução. Além disso, devia ter uma aguda inteligência já que, apesar do pouco estudo, falava fluentemente o francês e lia os filósofos, arrebanhados semanalmente na imensa biblioteca de um amigo advogado.
Era assim o meu avô, promessa de uma vida imigrante e campesina, tornada urbana, quase sofisticada, a poder de muita obstinação. Nascido napolitano, viajara para o Brasil ainda menino e aqui mudara o destino que haviam lhe traçado. Exibia uma letra rebuscada e perfeita em suas volutas e arabescos, qualidade que lhe rendeu a profissão de guarda-livros.
Dormia quatro horas por noite. Madrugada ainda, enfiava-se no terno e metia-se na padaria do compadre Rodrigues logo ali na esquina. A primeira fornada de pãezinhos aspergia seu perfume por todo o quarteirão e ele subia a ladeira com o saco de pão num braço e o Estadão no outro. Devorava ambos com prazer similar.
Tudo que sei do meu avô me foi contado por relatos familiares esparsos ao longo da vida. Guardo fotos em que ele me carrega no colo, encantado com os cachos e as bochechas da única neta que conheceu. Guardo igualmente lembranças daquilo que não vivi, como se o tivesse conhecido íntima e profundamente.
Meu avô, seus chapéus e sua eloqüência acabaram-se prematuramente no fundo de um rio, depois de uma curva matreira que expulsou da estrada de terra o carro e todos os seus ocupantes. Era noite, estava frio e eu, que só tinha um ano, nem pude chorar a morte do meu avô.

sábado, 17 de abril de 2010

Romãs

Ela bordava romãs. Lembro-me com nitidez dos frutos abertos, de um rosa escuro, pontilhados de bolinhas negras que ela preenchia com desvelo e paciência nos cantos da grande toalha de linho.
Chamava-se Manoela e trabalhou conosco durante alguns anos. De uma rispidez quase agressiva. Pouca prosa, nenhuma manifestação de carinho durante todo aquele tempo. Ainda assim bordava aquelas romãs intermináveis na toalha do enxoval.
Nas noites silenciosas, as ondas curtas do rádio povoando a sala, eu acompanhava os pontos indo e vindo, a linha grossa, a agulha precisa revelando cada um daqueles frutos.
Um pouco da minha solidão infantil ficou impressa no bordado. E foi embora com ela, o enxoval, o noivo, a rispidez, no dia em que se despediu. Não deixou saudades. Não preenchia nenhuma das lacunas fendidas bem no meio da minha infância. Jamais deixou de lado o bordado ou o rádio para amenizar aquele deserto imenso que já se instalara em minha vida.
Também, pudera, como ia saber, aquela Manoela morena, bugra, concisa nos limites estreitos da disciplina que exercia com mão de ferro e nenhuma condescendência? Como poderia adivinhar, ela, em seu mundinho austero, precário, desprovido? Que caminhos teria que percorrer para tatear minha alma antiga e triste?
Não. Ela jamais pressentiu o que eu esperava, sentada no chão, encolhida sobre os joelhos; nunca adivinhou a angústia daquelas noites ao som do rádio, olhando o bordado. Quase uma tortura.
Um dia, lembro-me bem, Manoela suspirou aliviada: “Acabei”. Estirou o pano sobre a mesa e observou sem nenhuma emoção o resultado. Era um bordado feio, mas ela não parecia se importar. Missão cumprida. Nesta noite provavelmente eu devo ter renovado um tiquinho de esperança – um olhar, as mãos desocupadas quem sabe alisando meu cabelo, um bolo fumegante fora de hora.
Que nada. Espreguiçou-se cansada num longo bocejo e repetiu o mote de todas as noites: “Hora de ir pra cama!”

Macarronada à moda de Adélia Prado

Para a mamma, as duas avós, as tantas tias.
Macarronada de domingo. Escandalosa herança peninsular, carregada de aromas, molhos escarlates, densos, fumegando a cozinha de lembranças. Segredos feitos de ervas, condimentos aviados em receitas antigas, orgulho de madonas com olhos carregados de histórias tristes.
Ritual aprendido no pau roliço e ranhurado, esticando a massa até a transparência – “redonda como se fosse feita com compasso”, orgulhava-se minha avó. Névoas de farinha e fervura. Depois arrumar a mesa, acomodar a sua volta os que restam e aguardar os elogios.
Mais tarde quando a casa dorme ou se entrega ao silêncio entumecido da tarde, esfregar os alumínios para faiscarem no sol quente. Lençóis no varal e poesia. Vez em quando, uma torta de maçã. O aroma quente e perfumado espalhando-se pelos cômodos frescos de venezianas e alpendres.
Sentadas em volta dos pontos intrincados de crochê, as mulheres da família acolchoam-se de uma alegria calma, da qual ninguém desconfia. Trocam receitas, às vezes “puxam” o terço ou trinam canções e risadas.
Às vezes se escondem, outras se revelam por trás dos óculos, das ancas, do afeto desmedido, da maledicência, das lembranças. Às vezes felizes, tristes, loucas, caladas. Às vezes cômicas, trágicas, mágicas sempre.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Peru de Natal e inocência

Natal era uma boa desculpa para a festa. Semanas antes, parentes distantes começavam a chegar, carregados de malas e novidades.Aos poucos, amontoavam-se em torno da grande mesa da cozinha, antecipando quitutes. As carnes por conta dos homens; às mulheres cabiam as massas e os doces.
Sovavam pães, batiam bolos, competiam recheios de frutas e coberturas de suspiro e chocolate. Esticávamos, então, os dedinhos e os olhos, na esperança de lamber a colher de pau, raspar panelas e terrinas – massa crua e dor de barriga.
Os capeletti brotavam de um ritual coletivo, dobrados um a um por todos os membros da família, à noite, intercalado a risadas ou a confrontos escandalosos e estéreis.
Ria-se muito, discutia-se alto, política, religião, bobagens. Em torno da mesa de pão, azeite e vinho eram firmados todos os juramentos, rompimentos, avassaladoras promessas de paixão e vingança, lágrimas e gargalhadas, invariavelmente esquecidas na manhã seguinte.
Amigos iam e vinham em meio à confusão, sem se anunciar, já que as portas deste tempo permaneciam abertas. A árvore de Natal reluzia imensa, sombreando um menino Jesus de olhos de vidro, que jamais teve sua divindade contestada.
No quintal, o peru gordo e doméstico aguardava inocente sua morte de véspera, ritual acompanhado pela risada histérica e curiosa das crianças embaladas pelo espetáculo de facão e sangue só permitido uma vez por ano.
Missa do Galo com roupa de domingo, igreja cheia, luz e cantoria. Coração aos pulos. Depois, a toalha de linho engomada, a louça tirada do armário, discursos, promessas e mais Ave-Maria. Os homens bebiam muito e se abraçavam com vigor e afeto. As mulheres fingiam uma muda reprovação e as crianças eram apenas crianças.
No dia seguinte, pular cedo da cama. Frio na barriga e Papai Noel carregando o único presente, aquele. Carrinho, boneca, bicicleta até o próximo Natal.
Lembro-me agora como se fosse mágica. Lembro-me com o encantamento de todos os natais, dos circos, das matinês de domingo, dos aniversários. Éramos mais doces. Ou talvez apenas mais inocentes.
Não gosto mais do Natal.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Antiguinha

A tarde prometia quintas-feiras. Adivinhava beijos clandestinos, recendia à flor de laranjeira. Tarde de noiva prometida, virgem antiga, novela de rádio e “baba-de-moça”.
Sobre o banquinho mambembe, ajustes no tule, entre alfinetes e segredos. Cinturinha de pilão aguardando a prole; sonhos de uma tarde de verão.

A Era do Rádio

Minha avó ouvia novelas pela rádio Nacional. Era religioso – tardes suarentas e silenciosas, cortadas pelos dramas soluçantes que reverberavam nos cômodos vazios. Choro, ranger de dentes e Colgate/Palmolive de quebra, na hora do “reclame”. Donzelas, vilões, galãs incitando a imaginação parva e sonolenta das donas de casa.
Heróis e vilões imaginados - ninguém nunca viu o galã ou pressentiu o rosto da heroína. Sabe-se lá se o mocinho era um nanico desdentado, ou a princesa, uma gordota horrorosa? Ouvindo-os, apenas, imaginávamos um mundo idealizado segundo as fantasias de cada um e alimentados por apitos de trens, passos na calçada, bater de portas e pela música orquestrada ao fundo.

O rádio era, então, um móvel de sala. Imenso, alimentado de válvulas e chiados por trás dos quais tentava-se decifrar a empostada voz dos locutores irradiando notícias no Repórter Esso ou transmitindo futebol numa velocidade absurda. Sem contar os programas musicais, quando se aguçava os ouvidos e as emoções ao som de orquestras de jazz.

Foi pelas ondas do rádio que aprendi a ouvir os agudos de Ângela Maria e os malabarismos vocais de Cauby nas intermináveis tardes de verão – cozinha ladrilhada e alguém batendo um bolo.

Dos programas de auditório, guardo uma lembrança pessoal e um tanto nebulosa. Mas não foi sonho, não. De vestidinho de organdi pinicando meus quatro anos, e um descomunal laço de fita na cabeça, me vi num domingo de manhã no palco da rádio local trinando “Ai lili, ai lili, ailô” com um imenso oco no estômago. Vertigem, calor de rachar. Mas a Célia, que cuidava de mim com o desvelo das mães postiças, aplaudia orgulhosíssima na platéia apertada. Nos seus sonhos mais loucos, eu provavelmente me transformaria numa nova Sapoti.

Mal sabia ela que um dia, não muito distante, a era delicada e sonolenta do rádio se despediria de nossas vidas. Assim como os locutores impostados, os galãs imaginados, as orquestras de jazz – a própria Célia, que iria embora junto com a minha infância.
Este texto já tinha sido publicado pela Carmen, mas como estou seguinto o livro, resolvi publicar novamente.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Bocejo

Cinco menininhas de pijama. Buquês vermelhos espalhados sobre a malha; fitilhos, seda, babados; shortinhos largos, botões trocados. Bocejos enrodilhados de colo.
Leite quente, boneca de pano, alfazema e lençóis amassados.
Cochichos desvendando segredos de Polichinelo. Bochechas, bocas de maçã, emaranhado de cachos dourados. Lisuras castanhas.
Manhas, franjas atropelando os olhos semi-cerrados.
As menininhas de pijama sonham, contam cantigas nos dedinhos macios: uni, duni, tre; salamê mingüê. E o polegar adormece entre a fada, a bruxa e os lábios desenhados em vermelho entre as bochechas. Balbuciam uma canção de ninar essas meninas doces, ninfas e seus pijamas encantados.
Voam, borboletas pelo quarto.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Um Livro Saboroso


O ano passado, na Feira do Livro, foi lançado o livro Pequena Pausa Para Um Susto - Historinhas e Fragmentos de Carmen Cagno. A partir de hoje, eu, Lau Baptista, vou começar a publicar aqui no Blog da Cá os textos que compoem este livro. Inicio pelo texto de abertura do livro escrito pelo MIC, Luiz Augusto Michelazzo e pelo texto Goiaba tem Bicho que abre o primeiro caderno do livro, denominado MENINICE, e, é seguido pelos textos: Bocejo, A era do rádio, Antiguinha, Peru de Natal e inocência, Macarronada à moda de Adélia Prado, Romãs, Os chapéus de meu avô e Domingos Antigos.

Carmen escreve com a calma e a percepção dos que sabem da vida e a elegância dos que aprenderam a pilotar, com graça e arte, essa nossa língua complicada e bela.
Suas linhas têm gosto de infância, amor e poesia, alinhavadas na consciência do tempo – implacável – e dos pequenos momentos que recheiam e dão sabor à nossa existência. Carmen maneja palavras como quem vai compondo colares numa tarde sossegada. Vai bordando fios de pensamentos, balançando a rede molenga da memória, numa varanda quieta, a brisa nas folhas e a avó – que já nos deixou há tanto tempo – ressonando ao lado na cadeira de balanço. Pega a mão da gente e nos mergulha nas delícias da infância – coisa que só sabe fazer quem teve infância. Não essa do videogame, shopping, escola de natação. Aquela, das casas com laranjeiras no quintal, margaridas no jardim, menininhas de pijama, rádio ligado na Nacional do Rio de Janeiro, natais tão esperados e a infalível religião da macarronada dominical. Dias sem pressa nem estresse. Dias da Rua São José, no Higienópolis, antes que o paraíso se transformasse em pombal de casas empilhadas e gente sem face.
As histórias da Carmen têm a leve dor do passado, temperadas pelo aroma do bolo de fubá no forno, erva doce e goiabada fervendo no tacho: fogo de lenha estalando e uma velha ralhando preocupada – a dona Ritinha, a madrinha Maria, ou a avó Carolina da nossa infância –, um olho no doce, outro bondoso nas crianças endiabradas.
Seus outros enfoques são os da mulher que amou, que continua amando e vendo a vida passar, sem arrependimentos; dos amigos “que não aposentam o coração” nem a sanfona. E, como todo repórter, o olhar crítico de quem mergulha fundo na dor cotidiana, inconformada com a humilhação dos que, ai de nós!, sempre voltam para cobrar a fatura social vencida.

Goiaba tem Bicho
Saudades da Tia Mariinha
O gemido enjoadinho do gancho da rede no vai e vem da tarde em brasa. Fora isso, silêncio modorrento. Vez em quando, um latido longe, preguiçoso. E nenhum piu de passarinho enfeitando a preguiça.
Lá de cima, a sombra mansa da copa da goiabeira contorna a paisagem, arremata. Espalhada pelo quintal, a velha árvore guarda o cochilo da casa, e mancha que nem onça parda as volutas dos galhos grossos e seguros – ponto de apoio, esconderijo, dente na carne macia, sem medo do bicho. “Bicho de goiaba é goiaba, uai”.
Nem é preciso mais nada, a não ser a adivinhação do tacho lá no fundo, reluzindo ouro no sol da tarde, rasgado nas rebarbas pela pá de madeira mergulhando na polpa madura, buliçosa, escarlate. Tem cheiro esta tarde de goiabeira-goiaba-goiabada. E ele fende as narinas até o coração. Gruda no oco do estômago, antecipando-se doce; alinhava o canteiro de margaridas, o galinheiro, a parede descascada. Nem mesmo o jasmineiro carregado perfuma mais.
Uma alegria danada bulindo os sentidos; pés encardidos, vestido curto, pescoço suado e a certeza absoluta de que os anjos da guarda lá da matriz fogem do altar nestas tardes doces; aqueles gorduchos, lambendo os beiços.
Lá dentro, a cozinha já deve estar limpa e quieta, chão úmido de cera, paninho engomado sobre o fogão. Logo, logo alguém vai bater um bolo, tirar o queijo do guarda-comida e coar café no bule areado. Depois, vai ter burburinho de bocejos e causos em torno da mesa de madeira.
Hora do lanche. Pretexto pra jogar conversa fora, dar risada, implicar.
Na rede sob a goiabeira, estico um pouco mais as frinchas da tarde, prolongo um cochilo fingido até me dobrar de rir com as cócegas e os beijos de vó me chamando.
Não quero virar gente grande, não.