Palavra da Cá

Este Blog quer partilhar textos literários e nem tanto com vocês.
Vamos trocar poesias, fragmentos e idéias.
Afinal, as palavras nos justificam, não é?

domingo, 17 de maio de 2009

TIRO

Pendurou a esperança no gatilho e puxou. O estampido era mais seco e menos barulhento do que esperava. E não era que nem os filmes que assistia pela tevê. Era muito mais solitário e assustador. Além disso, não tinha música de fundo.
O corpo do moleque magrinho curvou-se para trás e depois foi desmoronando devagar feito um saco vazio. Tombou. Até que fora fácil. Matara o ladrãozinho - e não se sentia herói. Só mais esperto. Depois levou a arma até a mesa e ficou pensando o que fazer nos próximos minutos. Tentou se lembrar dos filmes e ligou para a polícia.
Tinha 18 anos e queria ser engenheiro, como o pai. O vestibular daqui a alguns meses o assustava mais do que o crime que acabara de cometer. Afinal, guerra é guerra, mas esta se ganhava com rapidez, sangue frio e pontaria. A outra, a do vestibular, era imponderável.
O filme do Bruce Willys não saía da cabeça. Ficou esperando a viatura sentado no degrau da frente. Depois, abriu um saco de Doritos e empanturrou o estômago oco. Mais Coca-Cola.
Para a polícia mais tarde, explicou que o moleque invadira a casa armado e que o pai lhe ensinara a atirar. Fins de semana no sítio, latas vazias, como nos filmes. Só então lembrou do celular da família em férias e contou tudo, primeiro pra irmão mais velho que atendeu lá da praia, depois pro pai que o chamou de “meu herói” e resolveu tudo com o delegado, amigo de pôquer.
A perícia examinou um pouco e depois levou o corpo do moleque sem nome. A vizinhança se alvoroçou, mas evitou intimidades. Foi cada um cuidar da vida.
Viu um pouco de televisão, fez um baita sanduíche e se enfiou outra vez nos livros. Vestibular era guerra pra gente grande.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Os Chapéus do Meu Avô

Meu avô tinha três chapéus. Um Panamá claro que sombreava seu rosto gorducho e vermelho, protegendo-o das agruras do verão canicular; um de feltro tom de tabaco, muito metido à inglês, que meu avô ostentava em noitinhas raras e frias; e finalmente, guardado no armário de cedro, um chapéu côco, preto, impossível na vida real. Duvido que jamais o tenha usado. Meu avô tinha dessas coisas – chapéus de cinema e uma certa arrogância própria das barrigas bem sucedidas.
Apesar de viver numa província empoeirada de terra vermelha, envergava um terno de linho 120 branco com a naturalidade dos coronéis tropicais. Jamais vestiu outro traje que não fosse composto pelas calças mambembes e o folgado paletó sobre a camisa impecável. Tudo imaculadamente branco.
No tanque e no ferro de engomar, minha avó ou alguma das pretas que povoavam a cozinha davam conta de traze-los como manda o figurino. Mesmo porque meu avô, apesar de bem humorado e bonachão, era de uma exigência atroz quando se tratava de roupas.
Tinha olhos muito verdes, quase felinos, apreciava bons vinhos, conversas de alpendre e mesa farta, servida por receitas peninsulares. Brodos fumegantes salpicados de massa fresca faziam-no suar a camisa que era trocada várias vezes ao dia.
Ria uma gargalhada estrondosa e amealhava amigos com raro poder de sedução. Além disso, devia ter uma aguda inteligência já que, apesar do pouco estudo, falava fluentemente o francês e lia os filósofos, arrebanhados semanalmente na imensa biblioteca de um amigo advogado.
Era assim o meu avô, promessa de uma vida imigrante e campesina, tornada urbana, quase sofisticada, a poder de muita obstinação. Nascido napolitano, viajara para o Brasil ainda menino e aqui mudara o destino que haviam lhe traçado. Exibia uma letra rebuscada e perfeita em suas volutas e arabescos, qualidade que lhe rendeu a profissão de guarda-livros.
Dormia quatro horas por noite. Madrugada ainda, enfiava-se no terno e metia-se na padaria do compadre Rodrigues logo ali na esquina. A primeira fornada de pãezinhos aspergia seu perfume por todo o quarteirão e ele subia a ladeira com o saco de pão num braço e o Estadão no outro. Devorava ambos com prazer similar.
Tudo que sei do meu avô me foi contado por relatos familiares esparsos ao longo da vida. Guardo fotos em que ele me carrega no colo, encantado com os cachos e as bochechas da única neta que conheceu. Guardo igualmente lembranças daquilo que não vivi, como se o tivesse conhecido íntima e profundamente.
Meu avô, seus chapéus e sua eloqüência acabaram-se prematuramente no fundo de um rio, depois de uma curva matreira que expulsou da estrada de terra o carro e todos os seus ocupantes. Era noite, estava frio e eu, que só tinha um ano, nem pude chorar a morte do meu avô.

Órfãos de Boal

Há uns mil anos mais ou menos, me vi um dia, de repente, com um grande frio na barriga, munida da minha cadernetinha de repórter, entrando no Teatro Eugênio Kusnet, antigo Arena, em São Paulo, onde iria entrevistar o, àquela altura, já famoso Augusto Boal. Ele estava de passagem pelo Brasil para montar algum trabalho. Morava na Europa e já andava pelo mundo espalhando a fecunda semente do seu Teatro do Oprimido e fascinando qualquer cidadão minimamente sensível aos problemas da humanidade.
Passei a tarde vendo seu ensaio e conversando com ele que, como todo gênio, era extremamente doce e humilde diante da minha inexperiência de quase menina, foquinha de redação.
Foi um dos grandes momentos da minha carreira jornalística. E não falo do ponto de vista profissional, apenas. Boal foi um dos entrevistados que acrescentou milhares de pontos à minha vida, à compreensão que eu passei a ter do mundo, aos conceitos que, devagar, iriam construir meu edifício interno.
Naquela tarde chuvosa e tão paulistana, passei a compreender que é possível, sim, transformar sonhos em realidade; é possível e desejável transgredir os limites do razoável e ousar o inesperado, o novo, o arriscado.
Boal ia me contando como nascera o seu projeto, como aos poucos, grupos de comunidades carentes passaram a encenar seus problemas, questões, dores, dúvidas, alegrias e se transformavam em atores da vida, neste grande palco em que ele transformou o mundo, auxiliando pessoas a se tornarem cidadãos; utilizando o teatro como ferramenta de superação e transformação.
E eu ia mergulhando em suas palavras, embevecida. Apaixonei-me. Não pelo homem, que já me parecia então uma mistura de anjo e missionário com aquela basta cabeleira e olhos de quem acredita. Apaixonei-me pelo ator, diretor, cidadão, companheiro. Adivinhei naquele momento todas as possibilidades que se abriam para a minha própria vida, então tão iniciante.
Sai daquele teatro agradecida, como aconteceu algumas vezes, por tamanho presente.
Esta semana, Boal nos deixou e senti-me um pouco órfã, um pouco viúva, mais sozinha. Pessoas como ele são cada vez mais raras neste mundo tão higienizado, inidividualizado, mercantilizado, ausente, sem compromissos. Li no jornal uma linda entrevista que concedeu pouco antes de morrer. Nada mudara. Seus ideais e sua atividade mantiham-se inteiros e emraizados, espalhados pelo mundo, alcançando os lugares mais distantes do planeta, multiplicando-se em outros grupos, em mais idéias, agora levados adiante por seu filho e discípulo.
Chorei pelo adeus do Boal, por nós, tão pobres e incapazes longe dele.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

TEXTOS NEM TÃO NOVOS ASSIM E UM PRESENTE DO FREI BETTO

O Lau, amigo atento, me deu uma bronca carinhosa pelo abandono em que andava este blog. Com razão. Enviou-me sugestões: textos meus, já publicados em jornal, mas que considera atuais (com o que concordo) e um belíssimo texto do Frei Betto (redundància) - presente e ensinamento para todos nós. Aí vão:

ENSINA TEU FILHO - FREI BETTO (publicado no Estadão)

Ensina a teu filho que o Brasil tem jeito e que ele deve crescer feliz por ser brasileiro. Há neste país juízes justos, ainda que esta verdade soe como cacófato. Juízes que, como meu pai, nunca empregaram familiares, embora tivessem filhos advogados, jamais fizeram da função um meio de angariar mordomias e, isentos, deram ganho de causa também a pobres, contrariando patrões gananciosos ou empresas que se viram obrigadas a aprender que, para certos homens, a honra é inegociável.
Ensina a teu filho que neste país há políticos íntegros como Antônio Pinheiro, pai do jornalista Chico Pinheiro, que revelou na mídia seu contracheque de parlamentar e devolveu aos cofres públicos jetons de procedência duvidosa.
Saiba o teu filho que, no monolito preto do Banco Central, em Brasília, onde trabalham cerca de 3 mil pessoas, a maioria é honrada e, porque não é cega, indignada ante maracutaias de autoridades que deveriam primar pela ética no cargo que lhes foi confiado.
Ensina a teu filho que não ter talento esportivo ou rosto e corpo de modelo, e sentir-se feio diante dos padrões vigentes de beleza, não é motivo para ele perder a auto-estima. A felicidade não se compra nem é um troféu que se ganha vencendo a concorrência. Tece-se de valores e virtudes e desenha, em nossa existência, um sentido pelo qual vale a pena viver e morrer.
Ensina a teu filho que o Brasil possui dimensões continentais e as mais férteis terras do planeta. Não se justifica, pois, tanta terra sem gente e tanta gente sem terra. Assim como a libertação dos escravos tardou, mas chegou, a reforma agrária haverá de se implantar. Tomara que regada com muito pouco sangue.
Saiba o teu filho que os sem-terra que ocupam áreas ociosas e prédios públicos são, hoje, chamados de "bandidos", como outrora a pecha caiu sobre Gandhi sentado nos trilhos das ferrovias inglesas e Luther King ocupando escolas vetadas aos negros.
Ensina a teu filho que pioneiros e profetas, de Jesus a Tiradentes, de Francisco de Assis a Nelson Mandela, são invariavelmente tratados, pela elite de seu tempo, como subversivos, malfeitores, visionários.
Ensina a teu filho que o Brasil é uma nação trabalhadora e criativa. Milhões de brasileiros levantam cedo todos os dias, comem aquém de suas necessidades e consomem a maior parcela de sua vida no trabalho, em troca de um salário que não lhes assegura sequer o acesso à casa própria. No entanto, essa gente é incapaz de furtar um lápis do escritório, um tijolo da obra, uma ferramenta da fábrica. Sente-se honrada por não descer ao ralo que nivela bandidos de colarinho branco com os pés-de-chinelo. É gente feita daquela matéria-prima dos lixeiros de Vitória que entregaram à polícia sacolas recheadas de dinheiro que assaltantes de banco haviam escondido numa caçamba.
Ensina teu filho a evitar a via preferencial dessa sociedade neoliberal que nos tenta incutir que ser consumidor é mais importante que ser cidadão, incensa quem esbanja fortuna e realça mais a estética que a ética.
Saiba o teu filho que o Brasil é a terra de índios que não se curvaram ao jugo português e de Zumbi, de Angelim e frei Caneca, de madre Joana Angélica e Anita Garibaldi, dom Hélder Câmara e Chico Mendes.
Ensina a teu filho que ele não precisa concordar com a desordem estabelecida e que será feliz se unir àqueles que lutam por transformações sociais que tornem este país livre e justo. Então, ele transmitirá a teu neto o legado de tua sabedoria.
Ensina teu filho a votar com consciência e jamais ter nojo de política, pois quem age assim é governado por quem não tem e, se a maioria tiver a mesma reação, será o fim da democracia. Que o teu voto e o dele sejam em prol da justiça social e dos direitos dos brasileiros imerecidamente tão pobres e excluídos, por razões políticas, dos dons da vida.
Ensina a teu filho que a uma pessoa bastam o pão, o vinho e um grande amor. Cultiva nele os desejos do espírito. Saiba o teu filho escutar o silêncio, reverenciar as expressões de vida e deixar-se amar por Deus que o habita.

ACENDAM A LUZ

Tudo bem. Com o avanço da idade nossa visão vai diminuindo, mas juro que não é esse o caso. O caso, leitores, é que esta cidade está cada vez mais escura. Experimentem sair de casa depois que anoitece, verifiquem com seus próprios olhos - velhos ou novos. A coisa tá preta.
Não sei se é o tipo de iluminação, se o número de lâmpadas, sei lá. Não entendo disso. Mas que está escuro, está. Os bairros, principalmente, mergulham numa penumbra assustadora logo à noitinha e mais parecem becos saídos de romances do século dezenove.
Romântico, você pode argumentar. Digamos que sim, mas convenhamos, não há romance que resista ao breu reinante, numa época em que qualquer passeio noturno pode acabar em B.O na delegacia. E depois, minha gente, cidadezinha com praça, coreto e lampião de gás é muito bonito mas não combina mais com uma cidade de 600 mil habitantes, que se pretende moderna e contemporânea.
É irônico esse monte de Banco, loja de grife, shopping, restaurante, carro importado e o pessoal apertando o olhinho pra poder enxergar uma placa, um cachorro ou um simples mortal que atravessa a rua.
Avisem-me se o problema for de natureza oftalmológica. Mas garanto que meu médico é competente, meus óculos estão em dia e a cidade está escura. Na frente da minha casa, por exemplo, tem aquele poste imenso, com aquele chapeuzinho lá em cima, e uma luz fraquinha que dá pena. O modelo da tal luminária e a potência de sua lâmpada são do tempo do zagaia ( quando, aliás, usava-se expressões como esta).
Hoje, a quantidade de neons, luminosos, bares, biroscas que se amontoam em cada esquina ofuscam a já fraca iluminação pública. Ou seja, a proliferação de mídias luminosas não só polui o ambiente, embaralha os sentidos e desorienta o cidadão, como neutraliza o que deveria ser claridade pura e simples. Claridade para segurança, beleza, alegria, orientação de quem ainda gosta de percorrer as ruas da cidade. Acendam a luz, por favor. Caso contrário, nosso única saída será a féerica e insuportável iluminação dos shoppings.

DOMINGOS ANTIGOS

Domingos antigos abrigavam alguns rituais. Um deles era a missa, garantida pela severidade familiar, abrigando as cabecinhas virgens com mantilhas de renda branca e acompanhadas por terços de madrepérola e missal pretinho. Lá íamos nós, boca amarga de jejum forçado, olhos sonados e remelentos, todos os pecados confessados na véspera, receber a eucaristia. Não que entendêssemos perfeitamente o que isso significava. Afinal, mistérios como o da Santíssima Trindade ou da transmutação de hóstia em corpo crístico não eram lá coisas para crianças. De certo e garantido, sabíamos que não podia morder. Pecado mortal. Então engolíamos a delicada partícula de farinha e água com respeito e algum temor.
No mais, havia sempre a promessa do café da manhã. Pão quentinho, manteiga escorrendo pelas bordas, leite gordo de natas, sequilhos, rosquinhas , pão-de- ló, bolo de fubá. Depois, tirar os vestidos de lese e as fitas do cabelo, e rua. Brincar até cansar.
Acreditem jovens leitores, não havia televisão – nem computador, vídeo-cassete, DVD, celular, shopping-center. Sobrevivemos a essa falta com galhardia e, arrisco até, com algumas vantagens. A sobrevivência estava diretamente ligada ao grupo. Brincávamos, jogávamos, aprendíamos na marra a interagir, superar obstáculos, amargar as derrotas, partilhar as vitórias. Crescíamos olhando o outro e dividindo a vida com ele. Amarelinha, pula-sela, bolinha de gude, pique-esconde.
Desconfio que esses territórios lúdicos e dominicais foram responsáveis em grande parte pela formação do caráter de algumas gerações. Alí, entre batalhas de bola e terra, definíamos nossos talentos e aptidões, conquistávamos ou perdíamos espaços preciosos, barganhávamos vantagens, conhecíamos limites físicos e éticos. Dali saíam os craques de futebol, os heróis de briga, os articuladores, os covardes, os sedutores. Quem pisar depois da linha, a mãe não é séria. E ninguém pisava.
Bons domingos em que nos lambuzávamos de pirulitos-puxa de açúcar e picolés de groselha que, em minutos, transferiam o carmim do sorvete para nossas bocas e bochechas. Domingos de árvores, córregos, carrinho de rolemã, bonecas de pano - porque presentes de verdade, só no Natal e aniversário.
Aos adultos eram reservados outros prazeres, como jogar conversa fora sob as árvores do quintal ou em cadeiras enfileiradas na calçada. Conversas de gente grande, em que criança não entrava. Dos adultos também, a prerrogativa inquestionável de comandar nossos prosaicos destinos infantís. “Hora do banho!”, alguém gritava. E acabou-se a brincadeira. Depois, a sopa quente, pijama e cama. Com direito a histórias de avó e cafuné.
Domingos inocentes. Nem melhores, nem piores. Apenas diferentes.

A CULPA É DA MÍDIA

De uns tempos para cá, virou moda. Tudo o que acontece no planeta tem como única responsável, a mídia. A mídia, essa jovem senhora tão cheia de afazeres e qualidades, transformou-se numa espécie de entidade maligna, num ser onipresente e onipotente, com vida própria e um poder de manipulação que deixa qualquer Big Brother no chinelo.
Como todo mundo sabe, “mídia” é a denominação emprestada dos norte-americanos para qualquer meio de comunicação – tevê, rádio, internet, revista, jornal, enfim todos os meios, eletrônicos ou não, de comunicação disponíveis para a sociedade. Ou seja, a mídia é só o meio, o canal de comunicação, através do qual são veiculados produtos, idéias, informações. De jornalismo a besteirol; de documentários a bundas e peitos; de clássicos do cinema a programas de auditório; de produtos de consumo a política ou cartas de amor, tudo ou quase tudo hoje em dia é comunicado através das mídias.
Mídia, portanto, senhoras e senhores, é apenas o veículo que transmite conceitos e idéias. Não existe em si. Não tem ideologia, não cria nem produz absolutamente nada, ou seja, não tem responsabilidade nenhuma sobre o que acontece no mundo. Os responsáveis por aquilo que a mídia expõe somos nós, é a sociedade, que comunica, através da mídia, desde marca de sabão até programa político e guerra no Iraque. E, mais importante, somos nós também que escolhemos consumir ou não aquilo que a mídia divulga.
Mas não adianta. Virou um bordão - e uma bela desculpa para explicar tudo o que está errado. O filho é um insolente, preguiçoso, inútil? Culpa da mídia. A criancinha rasga o sofá, vomita no tapete e atormenta as visitas? A mídia. O pessoal mata, estupra e rouba cada vez mais? Pode saber que é a mídia. A família não conversa a não ser para trocar insultos? Não dá outra, a mídia. A moçada não lê nem bula de remédio? É a mídia. O mundo está uma porcaria, violento, auto-centrado, individualista, deprimido? A mídia, a mídia, a mídia. As pessoas consomem em vez de pensarem? Claro, a mídia.
Afinal, sempre foi muito mais fácil transferir nossas responsabilidades para o outro. E o Outro, agora, é a coitada da mídia, o grande bode expiatório da pós-modernidade. Antigamente, o casamento não dava certo por culpa do marido ou da mulher, nunca da gente. O filho estava malcriado ou tirava notas baixas por causa das companhias, não porque não tinha atenção em casa. O assaltante roubava porque era malandro ou mau-caráter. Enfim, o problema era dos outros. E continua sendo. Só que agora encontramos um único responsável por todas as mazelas e incompetências pessoais e sociais: a mídia.
É bom lembrar que por trás da tevê, do jornal, da revista existe gente. Que por trás dessa gente existem interesses, ideologias e principalmente anunciantes que patrocinam os conteúdos veiculados na mídia, de acordo com o sucesso ou fracasso do que é veiculado. E quem determina esse sucesso ou fracasso somos nós. Quem passa horas por semana assistindo a programas de quinta categoria na tevê ou lendo revistas que só se preocupam com a vida sexual de artista de novela, não pode reclamar de mídia nenhuma. Tem é que refazer seus conceitos sobre lazer e informação. Ou então conformar-se em viver numa sociedade cada vez mais banalizada.
É claro que num país com baixíssimos níveis de educação como o nosso, a mídia acaba tendo força de manipulação. Mas daí a responsabilizar os meios de comunicação pela educação social há uma longa distância. Eu sou da turma que ainda acredita que educação e princípios se aprende em casa; que a violência começa na sala de jantar ou na falta de oportunidade de se tornar um cidadão digno; que a falta de ética é ensinada por aqueles pais que acham engraçado passar os outros pra trás e votar em político corrupto; que a obsessão pelo consumo não é criada pela propaganda, mas por pessoas que associam felicidade com carro novo.
Mídia é espelho. O que estamos vendo, ouvindo ou lendo diariamente é só um reflexo – às vezes triste – do mundo que criamos para viver. Transformá-lo é tarefa nossa. Garanto que a mídia vem atrás.