Palavra da Cá

Este Blog quer partilhar textos literários e nem tanto com vocês.
Vamos trocar poesias, fragmentos e idéias.
Afinal, as palavras nos justificam, não é?

terça-feira, 27 de abril de 2010

Domingos Antigos

Domingos antigos abrigavam alguns rituais. Um deles era a missa - garantida pela severidade familiar, abrigando as cabecinhas virgens, protegidas pela mantilha de renda branca. Terço de madrepérola e missal pretinho.
Boca amarga de jejum forçado, olhos sonados e remelentos, pecados confessados de véspera, prontos para receber a eucaristia – mais um dos mistérios que povoavam nosso mundo infantil de temor e fantasias. De certo e garantido, sabíamos que não podia morder – pecado mortal.
No mais, havia a promessa do café da manhã. Pão quentinho, manteiga escorrendo pelas bordas, leite gordo de natas, sem culpa; sequilhos, pão-de-ló, bolo de fubá. Depois, tirar o vestido de lese e as fitas do cabelo, e rua. Brincar até cansar.
Amarelinha, pula-sela, bola de gude, pique-esconde. Território lúdico contando nossa história entre batalhas de bola e terra de onde se revelavam talentos e aptidões. Conquistávamos ou perdíamos espaços preciosos, barganhávamos vantagens, conhecíamos limites físicos e éticos. Desses domingos de quintal nasciam craques de futebol, heróis de briga, articuladores, covardes, sedutores. Quem pisar fora da linha, a mãe não é séria. E ninguém pisava.
Domingos lambuzados de pirulitos-puxa de açúcar e picolé de groselha: carmim na boca e na bochecha. Árvores, córrego, carrinho de rolemã, boneca de pano.
Por perto, as rodas de adultos jogando conversa fora sob a árvore do quintal. Conversa de gente grande. Segredos bem guardados entre aquela gente meio distante, cheia de mistérios por desvendar; detentores da prerrogativa inquestionável de comandar nossos prosaicos destinos infantis. “Hora do banho”, alguém gritava, e acabou-se a brincadeira. Depois, sopa quente, pijama e cama. Até domingo que vem.
Com este texto, terminamos o primeiro caderno do livro "Pequena Pausa Para Um Susto - Historinhas e Fragmentos".
Vamos agora, iniciar o segundo caderno que tem como título: "O Breve Instante do Amor" que é composto pelos seguintes textos: Mambembe, Convite, Sol a pino, Margaridas, Alarme, Amigos, Bola de Meia, Fole Rasgado e Origam.

Os chapéus do meu avô

Meu avô tinha três chapéus. Um Panamá claro que sombreava seu rosto gorducho e vermelho, protegendo-o das agruras do verão canicular; um de feltro tom de tabaco, muito metido a inglês, que meu avô ostentava em noitinhas raras e frias; e finalmente, guardado no armário de cedro, um chapéu côco, preto, impossível na vida real. Duvido que jamais o tenha usado. Meu avô tinha dessas coisas – chapéus de cinema e uma certa arrogância própria das barrigas bem sucedidas.
Apesar de viver numa província empoeirada de terra vermelha, envergava um terno de linho 120 branco com a naturalidade dos coronéis tropicais. Jamais vestiu outro traje que não fosse composto pelas calças mambembes e o folgado paletó sobre a camisa impecável. Tudo imaculadamente branco.
No tanque e no ferro de engomar, minha avó ou alguma das pretas que povoavam a cozinha davam conta de trazê-los como manda o figurino. Mesmo porque meu avô, apesar de bem humorado e bonachão, era de uma exigência atroz quando se tratava de roupas.
Tinha olhos muito verdes, quase felinos, apreciava bons vinhos, conversas de alpendre e mesa farta, servida por receitas peninsulares. Brodos fumegantes salpicados de massa fresca faziam-no suar a camisa que era trocada várias vezes ao dia.
Ria uma gargalhada estrondosa e amealhava amigos com raro poder de sedução. Além disso, devia ter uma aguda inteligência já que, apesar do pouco estudo, falava fluentemente o francês e lia os filósofos, arrebanhados semanalmente na imensa biblioteca de um amigo advogado.
Era assim o meu avô, promessa de uma vida imigrante e campesina, tornada urbana, quase sofisticada, a poder de muita obstinação. Nascido napolitano, viajara para o Brasil ainda menino e aqui mudara o destino que haviam lhe traçado. Exibia uma letra rebuscada e perfeita em suas volutas e arabescos, qualidade que lhe rendeu a profissão de guarda-livros.
Dormia quatro horas por noite. Madrugada ainda, enfiava-se no terno e metia-se na padaria do compadre Rodrigues logo ali na esquina. A primeira fornada de pãezinhos aspergia seu perfume por todo o quarteirão e ele subia a ladeira com o saco de pão num braço e o Estadão no outro. Devorava ambos com prazer similar.
Tudo que sei do meu avô me foi contado por relatos familiares esparsos ao longo da vida. Guardo fotos em que ele me carrega no colo, encantado com os cachos e as bochechas da única neta que conheceu. Guardo igualmente lembranças daquilo que não vivi, como se o tivesse conhecido íntima e profundamente.
Meu avô, seus chapéus e sua eloqüência acabaram-se prematuramente no fundo de um rio, depois de uma curva matreira que expulsou da estrada de terra o carro e todos os seus ocupantes. Era noite, estava frio e eu, que só tinha um ano, nem pude chorar a morte do meu avô.

sábado, 17 de abril de 2010

Romãs

Ela bordava romãs. Lembro-me com nitidez dos frutos abertos, de um rosa escuro, pontilhados de bolinhas negras que ela preenchia com desvelo e paciência nos cantos da grande toalha de linho.
Chamava-se Manoela e trabalhou conosco durante alguns anos. De uma rispidez quase agressiva. Pouca prosa, nenhuma manifestação de carinho durante todo aquele tempo. Ainda assim bordava aquelas romãs intermináveis na toalha do enxoval.
Nas noites silenciosas, as ondas curtas do rádio povoando a sala, eu acompanhava os pontos indo e vindo, a linha grossa, a agulha precisa revelando cada um daqueles frutos.
Um pouco da minha solidão infantil ficou impressa no bordado. E foi embora com ela, o enxoval, o noivo, a rispidez, no dia em que se despediu. Não deixou saudades. Não preenchia nenhuma das lacunas fendidas bem no meio da minha infância. Jamais deixou de lado o bordado ou o rádio para amenizar aquele deserto imenso que já se instalara em minha vida.
Também, pudera, como ia saber, aquela Manoela morena, bugra, concisa nos limites estreitos da disciplina que exercia com mão de ferro e nenhuma condescendência? Como poderia adivinhar, ela, em seu mundinho austero, precário, desprovido? Que caminhos teria que percorrer para tatear minha alma antiga e triste?
Não. Ela jamais pressentiu o que eu esperava, sentada no chão, encolhida sobre os joelhos; nunca adivinhou a angústia daquelas noites ao som do rádio, olhando o bordado. Quase uma tortura.
Um dia, lembro-me bem, Manoela suspirou aliviada: “Acabei”. Estirou o pano sobre a mesa e observou sem nenhuma emoção o resultado. Era um bordado feio, mas ela não parecia se importar. Missão cumprida. Nesta noite provavelmente eu devo ter renovado um tiquinho de esperança – um olhar, as mãos desocupadas quem sabe alisando meu cabelo, um bolo fumegante fora de hora.
Que nada. Espreguiçou-se cansada num longo bocejo e repetiu o mote de todas as noites: “Hora de ir pra cama!”

Macarronada à moda de Adélia Prado

Para a mamma, as duas avós, as tantas tias.
Macarronada de domingo. Escandalosa herança peninsular, carregada de aromas, molhos escarlates, densos, fumegando a cozinha de lembranças. Segredos feitos de ervas, condimentos aviados em receitas antigas, orgulho de madonas com olhos carregados de histórias tristes.
Ritual aprendido no pau roliço e ranhurado, esticando a massa até a transparência – “redonda como se fosse feita com compasso”, orgulhava-se minha avó. Névoas de farinha e fervura. Depois arrumar a mesa, acomodar a sua volta os que restam e aguardar os elogios.
Mais tarde quando a casa dorme ou se entrega ao silêncio entumecido da tarde, esfregar os alumínios para faiscarem no sol quente. Lençóis no varal e poesia. Vez em quando, uma torta de maçã. O aroma quente e perfumado espalhando-se pelos cômodos frescos de venezianas e alpendres.
Sentadas em volta dos pontos intrincados de crochê, as mulheres da família acolchoam-se de uma alegria calma, da qual ninguém desconfia. Trocam receitas, às vezes “puxam” o terço ou trinam canções e risadas.
Às vezes se escondem, outras se revelam por trás dos óculos, das ancas, do afeto desmedido, da maledicência, das lembranças. Às vezes felizes, tristes, loucas, caladas. Às vezes cômicas, trágicas, mágicas sempre.