Palavra da Cá

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sexta-feira, 6 de março de 2009

Goiaba tem bicho

O gemido enjoadinho do gancho da rede no vai e vem da tarde em brasa. Fora isso, silêncio modorrento. Vez em quando, um latido longe, preguiçoso. E nenhum piu de passarinho enfeitando a preguiça.
Lá de cima, a sombra mansa da copa da goiabeira contorna a paisagem, arremata. Espalhada pelo quintal, a velha árvore guarda o cochilo da casa, e mancha que nem onça parda as volutas dos galhos grossos e seguros – ponto de apoio, esconderijo, dente na carne macia, sem medo do bicho. “Bicho de goiaba é goiaba, uai”.
Nem é preciso mais nada, a não ser a adivinhação do tacho lá no fundo, reluzindo ouro no sol da tarde, rasgado nas rebarbas pela pá de madeira mergulhando na polpa madura, buliçosa, escarlate. Tem cheiro esta tarde de goiabeira-goiaba-goiabada. E ele fende as narinas até o coração. Gruda no oco do estômago, antecipando-se doce; alinhava o canteiro de margaridas, o galinheiro, a parede descascada. Nem mesmo o jasmineiro carregado perfuma mais.
Uma alegria danada bulindo os sentidos; pés encardidos, vestido curto, pescoço suado e a certeza absoluta de que os anjos da guarda lá da matriz fogem do altar nestas tardes doces; aqueles gorduchos, lambendo os beiços.
Lá dentro, a cozinha já deve estar limpa e quieta, chão úmido de cera, paninho engomado sobre o fogão. Logo, logo alguém vai bater um bolo, tirar o queijo do guarda-comida e coar café no bule areado. Depois, vai ter burburinho de bocejos e causos em torno da mesa de madeira.
Hora do lanche. Pretexto pra jogar conversa fora, dar risada, implicar.
Na rede sob a goiabeira, estico um pouco mais as frinchas da tarde, prolongo um cochilo fingido até me dobrar de rir com as cócegas e os beijos de vó me chamando.
Não quero virar gente grande, não.

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