Palavra da Cá

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Afinal, as palavras nos justificam, não é?

quarta-feira, 10 de março de 2010

Um Livro Saboroso


O ano passado, na Feira do Livro, foi lançado o livro Pequena Pausa Para Um Susto - Historinhas e Fragmentos de Carmen Cagno. A partir de hoje, eu, Lau Baptista, vou começar a publicar aqui no Blog da Cá os textos que compoem este livro. Inicio pelo texto de abertura do livro escrito pelo MIC, Luiz Augusto Michelazzo e pelo texto Goiaba tem Bicho que abre o primeiro caderno do livro, denominado MENINICE, e, é seguido pelos textos: Bocejo, A era do rádio, Antiguinha, Peru de Natal e inocência, Macarronada à moda de Adélia Prado, Romãs, Os chapéus de meu avô e Domingos Antigos.

Carmen escreve com a calma e a percepção dos que sabem da vida e a elegância dos que aprenderam a pilotar, com graça e arte, essa nossa língua complicada e bela.
Suas linhas têm gosto de infância, amor e poesia, alinhavadas na consciência do tempo – implacável – e dos pequenos momentos que recheiam e dão sabor à nossa existência. Carmen maneja palavras como quem vai compondo colares numa tarde sossegada. Vai bordando fios de pensamentos, balançando a rede molenga da memória, numa varanda quieta, a brisa nas folhas e a avó – que já nos deixou há tanto tempo – ressonando ao lado na cadeira de balanço. Pega a mão da gente e nos mergulha nas delícias da infância – coisa que só sabe fazer quem teve infância. Não essa do videogame, shopping, escola de natação. Aquela, das casas com laranjeiras no quintal, margaridas no jardim, menininhas de pijama, rádio ligado na Nacional do Rio de Janeiro, natais tão esperados e a infalível religião da macarronada dominical. Dias sem pressa nem estresse. Dias da Rua São José, no Higienópolis, antes que o paraíso se transformasse em pombal de casas empilhadas e gente sem face.
As histórias da Carmen têm a leve dor do passado, temperadas pelo aroma do bolo de fubá no forno, erva doce e goiabada fervendo no tacho: fogo de lenha estalando e uma velha ralhando preocupada – a dona Ritinha, a madrinha Maria, ou a avó Carolina da nossa infância –, um olho no doce, outro bondoso nas crianças endiabradas.
Seus outros enfoques são os da mulher que amou, que continua amando e vendo a vida passar, sem arrependimentos; dos amigos “que não aposentam o coração” nem a sanfona. E, como todo repórter, o olhar crítico de quem mergulha fundo na dor cotidiana, inconformada com a humilhação dos que, ai de nós!, sempre voltam para cobrar a fatura social vencida.

Goiaba tem Bicho
Saudades da Tia Mariinha
O gemido enjoadinho do gancho da rede no vai e vem da tarde em brasa. Fora isso, silêncio modorrento. Vez em quando, um latido longe, preguiçoso. E nenhum piu de passarinho enfeitando a preguiça.
Lá de cima, a sombra mansa da copa da goiabeira contorna a paisagem, arremata. Espalhada pelo quintal, a velha árvore guarda o cochilo da casa, e mancha que nem onça parda as volutas dos galhos grossos e seguros – ponto de apoio, esconderijo, dente na carne macia, sem medo do bicho. “Bicho de goiaba é goiaba, uai”.
Nem é preciso mais nada, a não ser a adivinhação do tacho lá no fundo, reluzindo ouro no sol da tarde, rasgado nas rebarbas pela pá de madeira mergulhando na polpa madura, buliçosa, escarlate. Tem cheiro esta tarde de goiabeira-goiaba-goiabada. E ele fende as narinas até o coração. Gruda no oco do estômago, antecipando-se doce; alinhava o canteiro de margaridas, o galinheiro, a parede descascada. Nem mesmo o jasmineiro carregado perfuma mais.
Uma alegria danada bulindo os sentidos; pés encardidos, vestido curto, pescoço suado e a certeza absoluta de que os anjos da guarda lá da matriz fogem do altar nestas tardes doces; aqueles gorduchos, lambendo os beiços.
Lá dentro, a cozinha já deve estar limpa e quieta, chão úmido de cera, paninho engomado sobre o fogão. Logo, logo alguém vai bater um bolo, tirar o queijo do guarda-comida e coar café no bule areado. Depois, vai ter burburinho de bocejos e causos em torno da mesa de madeira.
Hora do lanche. Pretexto pra jogar conversa fora, dar risada, implicar.
Na rede sob a goiabeira, estico um pouco mais as frinchas da tarde, prolongo um cochilo fingido até me dobrar de rir com as cócegas e os beijos de vó me chamando.
Não quero virar gente grande, não.

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