Palavra da Cá

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sexta-feira, 26 de março de 2010

Peru de Natal e inocência

Natal era uma boa desculpa para a festa. Semanas antes, parentes distantes começavam a chegar, carregados de malas e novidades.Aos poucos, amontoavam-se em torno da grande mesa da cozinha, antecipando quitutes. As carnes por conta dos homens; às mulheres cabiam as massas e os doces.
Sovavam pães, batiam bolos, competiam recheios de frutas e coberturas de suspiro e chocolate. Esticávamos, então, os dedinhos e os olhos, na esperança de lamber a colher de pau, raspar panelas e terrinas – massa crua e dor de barriga.
Os capeletti brotavam de um ritual coletivo, dobrados um a um por todos os membros da família, à noite, intercalado a risadas ou a confrontos escandalosos e estéreis.
Ria-se muito, discutia-se alto, política, religião, bobagens. Em torno da mesa de pão, azeite e vinho eram firmados todos os juramentos, rompimentos, avassaladoras promessas de paixão e vingança, lágrimas e gargalhadas, invariavelmente esquecidas na manhã seguinte.
Amigos iam e vinham em meio à confusão, sem se anunciar, já que as portas deste tempo permaneciam abertas. A árvore de Natal reluzia imensa, sombreando um menino Jesus de olhos de vidro, que jamais teve sua divindade contestada.
No quintal, o peru gordo e doméstico aguardava inocente sua morte de véspera, ritual acompanhado pela risada histérica e curiosa das crianças embaladas pelo espetáculo de facão e sangue só permitido uma vez por ano.
Missa do Galo com roupa de domingo, igreja cheia, luz e cantoria. Coração aos pulos. Depois, a toalha de linho engomada, a louça tirada do armário, discursos, promessas e mais Ave-Maria. Os homens bebiam muito e se abraçavam com vigor e afeto. As mulheres fingiam uma muda reprovação e as crianças eram apenas crianças.
No dia seguinte, pular cedo da cama. Frio na barriga e Papai Noel carregando o único presente, aquele. Carrinho, boneca, bicicleta até o próximo Natal.
Lembro-me agora como se fosse mágica. Lembro-me com o encantamento de todos os natais, dos circos, das matinês de domingo, dos aniversários. Éramos mais doces. Ou talvez apenas mais inocentes.
Não gosto mais do Natal.

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