Palavra da Cá

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terça-feira, 12 de maio de 2009

Órfãos de Boal

Há uns mil anos mais ou menos, me vi um dia, de repente, com um grande frio na barriga, munida da minha cadernetinha de repórter, entrando no Teatro Eugênio Kusnet, antigo Arena, em São Paulo, onde iria entrevistar o, àquela altura, já famoso Augusto Boal. Ele estava de passagem pelo Brasil para montar algum trabalho. Morava na Europa e já andava pelo mundo espalhando a fecunda semente do seu Teatro do Oprimido e fascinando qualquer cidadão minimamente sensível aos problemas da humanidade.
Passei a tarde vendo seu ensaio e conversando com ele que, como todo gênio, era extremamente doce e humilde diante da minha inexperiência de quase menina, foquinha de redação.
Foi um dos grandes momentos da minha carreira jornalística. E não falo do ponto de vista profissional, apenas. Boal foi um dos entrevistados que acrescentou milhares de pontos à minha vida, à compreensão que eu passei a ter do mundo, aos conceitos que, devagar, iriam construir meu edifício interno.
Naquela tarde chuvosa e tão paulistana, passei a compreender que é possível, sim, transformar sonhos em realidade; é possível e desejável transgredir os limites do razoável e ousar o inesperado, o novo, o arriscado.
Boal ia me contando como nascera o seu projeto, como aos poucos, grupos de comunidades carentes passaram a encenar seus problemas, questões, dores, dúvidas, alegrias e se transformavam em atores da vida, neste grande palco em que ele transformou o mundo, auxiliando pessoas a se tornarem cidadãos; utilizando o teatro como ferramenta de superação e transformação.
E eu ia mergulhando em suas palavras, embevecida. Apaixonei-me. Não pelo homem, que já me parecia então uma mistura de anjo e missionário com aquela basta cabeleira e olhos de quem acredita. Apaixonei-me pelo ator, diretor, cidadão, companheiro. Adivinhei naquele momento todas as possibilidades que se abriam para a minha própria vida, então tão iniciante.
Sai daquele teatro agradecida, como aconteceu algumas vezes, por tamanho presente.
Esta semana, Boal nos deixou e senti-me um pouco órfã, um pouco viúva, mais sozinha. Pessoas como ele são cada vez mais raras neste mundo tão higienizado, inidividualizado, mercantilizado, ausente, sem compromissos. Li no jornal uma linda entrevista que concedeu pouco antes de morrer. Nada mudara. Seus ideais e sua atividade mantiham-se inteiros e emraizados, espalhados pelo mundo, alcançando os lugares mais distantes do planeta, multiplicando-se em outros grupos, em mais idéias, agora levados adiante por seu filho e discípulo.
Chorei pelo adeus do Boal, por nós, tão pobres e incapazes longe dele.

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