Palavra da Cá

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sexta-feira, 1 de maio de 2009

DOMINGOS ANTIGOS

Domingos antigos abrigavam alguns rituais. Um deles era a missa, garantida pela severidade familiar, abrigando as cabecinhas virgens com mantilhas de renda branca e acompanhadas por terços de madrepérola e missal pretinho. Lá íamos nós, boca amarga de jejum forçado, olhos sonados e remelentos, todos os pecados confessados na véspera, receber a eucaristia. Não que entendêssemos perfeitamente o que isso significava. Afinal, mistérios como o da Santíssima Trindade ou da transmutação de hóstia em corpo crístico não eram lá coisas para crianças. De certo e garantido, sabíamos que não podia morder. Pecado mortal. Então engolíamos a delicada partícula de farinha e água com respeito e algum temor.
No mais, havia sempre a promessa do café da manhã. Pão quentinho, manteiga escorrendo pelas bordas, leite gordo de natas, sequilhos, rosquinhas , pão-de- ló, bolo de fubá. Depois, tirar os vestidos de lese e as fitas do cabelo, e rua. Brincar até cansar.
Acreditem jovens leitores, não havia televisão – nem computador, vídeo-cassete, DVD, celular, shopping-center. Sobrevivemos a essa falta com galhardia e, arrisco até, com algumas vantagens. A sobrevivência estava diretamente ligada ao grupo. Brincávamos, jogávamos, aprendíamos na marra a interagir, superar obstáculos, amargar as derrotas, partilhar as vitórias. Crescíamos olhando o outro e dividindo a vida com ele. Amarelinha, pula-sela, bolinha de gude, pique-esconde.
Desconfio que esses territórios lúdicos e dominicais foram responsáveis em grande parte pela formação do caráter de algumas gerações. Alí, entre batalhas de bola e terra, definíamos nossos talentos e aptidões, conquistávamos ou perdíamos espaços preciosos, barganhávamos vantagens, conhecíamos limites físicos e éticos. Dali saíam os craques de futebol, os heróis de briga, os articuladores, os covardes, os sedutores. Quem pisar depois da linha, a mãe não é séria. E ninguém pisava.
Bons domingos em que nos lambuzávamos de pirulitos-puxa de açúcar e picolés de groselha que, em minutos, transferiam o carmim do sorvete para nossas bocas e bochechas. Domingos de árvores, córregos, carrinho de rolemã, bonecas de pano - porque presentes de verdade, só no Natal e aniversário.
Aos adultos eram reservados outros prazeres, como jogar conversa fora sob as árvores do quintal ou em cadeiras enfileiradas na calçada. Conversas de gente grande, em que criança não entrava. Dos adultos também, a prerrogativa inquestionável de comandar nossos prosaicos destinos infantís. “Hora do banho!”, alguém gritava. E acabou-se a brincadeira. Depois, a sopa quente, pijama e cama. Com direito a histórias de avó e cafuné.
Domingos inocentes. Nem melhores, nem piores. Apenas diferentes.

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