Palavra da Cá

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sábado, 17 de abril de 2010

Romãs

Ela bordava romãs. Lembro-me com nitidez dos frutos abertos, de um rosa escuro, pontilhados de bolinhas negras que ela preenchia com desvelo e paciência nos cantos da grande toalha de linho.
Chamava-se Manoela e trabalhou conosco durante alguns anos. De uma rispidez quase agressiva. Pouca prosa, nenhuma manifestação de carinho durante todo aquele tempo. Ainda assim bordava aquelas romãs intermináveis na toalha do enxoval.
Nas noites silenciosas, as ondas curtas do rádio povoando a sala, eu acompanhava os pontos indo e vindo, a linha grossa, a agulha precisa revelando cada um daqueles frutos.
Um pouco da minha solidão infantil ficou impressa no bordado. E foi embora com ela, o enxoval, o noivo, a rispidez, no dia em que se despediu. Não deixou saudades. Não preenchia nenhuma das lacunas fendidas bem no meio da minha infância. Jamais deixou de lado o bordado ou o rádio para amenizar aquele deserto imenso que já se instalara em minha vida.
Também, pudera, como ia saber, aquela Manoela morena, bugra, concisa nos limites estreitos da disciplina que exercia com mão de ferro e nenhuma condescendência? Como poderia adivinhar, ela, em seu mundinho austero, precário, desprovido? Que caminhos teria que percorrer para tatear minha alma antiga e triste?
Não. Ela jamais pressentiu o que eu esperava, sentada no chão, encolhida sobre os joelhos; nunca adivinhou a angústia daquelas noites ao som do rádio, olhando o bordado. Quase uma tortura.
Um dia, lembro-me bem, Manoela suspirou aliviada: “Acabei”. Estirou o pano sobre a mesa e observou sem nenhuma emoção o resultado. Era um bordado feio, mas ela não parecia se importar. Missão cumprida. Nesta noite provavelmente eu devo ter renovado um tiquinho de esperança – um olhar, as mãos desocupadas quem sabe alisando meu cabelo, um bolo fumegante fora de hora.
Que nada. Espreguiçou-se cansada num longo bocejo e repetiu o mote de todas as noites: “Hora de ir pra cama!”

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