Palavra da Cá

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terça-feira, 27 de abril de 2010

Os chapéus do meu avô

Meu avô tinha três chapéus. Um Panamá claro que sombreava seu rosto gorducho e vermelho, protegendo-o das agruras do verão canicular; um de feltro tom de tabaco, muito metido a inglês, que meu avô ostentava em noitinhas raras e frias; e finalmente, guardado no armário de cedro, um chapéu côco, preto, impossível na vida real. Duvido que jamais o tenha usado. Meu avô tinha dessas coisas – chapéus de cinema e uma certa arrogância própria das barrigas bem sucedidas.
Apesar de viver numa província empoeirada de terra vermelha, envergava um terno de linho 120 branco com a naturalidade dos coronéis tropicais. Jamais vestiu outro traje que não fosse composto pelas calças mambembes e o folgado paletó sobre a camisa impecável. Tudo imaculadamente branco.
No tanque e no ferro de engomar, minha avó ou alguma das pretas que povoavam a cozinha davam conta de trazê-los como manda o figurino. Mesmo porque meu avô, apesar de bem humorado e bonachão, era de uma exigência atroz quando se tratava de roupas.
Tinha olhos muito verdes, quase felinos, apreciava bons vinhos, conversas de alpendre e mesa farta, servida por receitas peninsulares. Brodos fumegantes salpicados de massa fresca faziam-no suar a camisa que era trocada várias vezes ao dia.
Ria uma gargalhada estrondosa e amealhava amigos com raro poder de sedução. Além disso, devia ter uma aguda inteligência já que, apesar do pouco estudo, falava fluentemente o francês e lia os filósofos, arrebanhados semanalmente na imensa biblioteca de um amigo advogado.
Era assim o meu avô, promessa de uma vida imigrante e campesina, tornada urbana, quase sofisticada, a poder de muita obstinação. Nascido napolitano, viajara para o Brasil ainda menino e aqui mudara o destino que haviam lhe traçado. Exibia uma letra rebuscada e perfeita em suas volutas e arabescos, qualidade que lhe rendeu a profissão de guarda-livros.
Dormia quatro horas por noite. Madrugada ainda, enfiava-se no terno e metia-se na padaria do compadre Rodrigues logo ali na esquina. A primeira fornada de pãezinhos aspergia seu perfume por todo o quarteirão e ele subia a ladeira com o saco de pão num braço e o Estadão no outro. Devorava ambos com prazer similar.
Tudo que sei do meu avô me foi contado por relatos familiares esparsos ao longo da vida. Guardo fotos em que ele me carrega no colo, encantado com os cachos e as bochechas da única neta que conheceu. Guardo igualmente lembranças daquilo que não vivi, como se o tivesse conhecido íntima e profundamente.
Meu avô, seus chapéus e sua eloqüência acabaram-se prematuramente no fundo de um rio, depois de uma curva matreira que expulsou da estrada de terra o carro e todos os seus ocupantes. Era noite, estava frio e eu, que só tinha um ano, nem pude chorar a morte do meu avô.

Um comentário:

Maninha disse...

Achei interessante teu texto, procurava eu , uma imagem de chapéu antigo, pois meu tio tbm usava!!!Não conheci meus avós..naquela época morriam cedo....